Luana Tolentino

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Mestra em Educação pela UFOP. Atuou como professora de História em escolas públicas da periferia de Belo Horizonte e da região metropolitana. É autora dos livros 'Outra educação é possível: feminismo, antirracismo e inclusão em sala de aula' (Mazza Edições) e 'Sobrevivendo ao racismo: memórias, cartas e o cotidiano da discriminação no Brasil' (Papirus 7 Mares).

Opinião

Quem defende a privatização do SUS frequenta o Albert Einstein e o Sírio Libanês

Com a pandemia, sem o Sistema Único de Saúde, a tragédia que se abate sobre nós teria sido ainda maior, escreve Luana Tolentino

Foto: Andréa Rêgo Barros/PCR Foto: Andréa Rêgo Barros/PCR
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Apesar das dificuldades que cercam o fazer docente, a escola sempre foi um lugar de felicidade para mim. Jamais poderia imaginar que viveria no meu local de trabalho umas das experiências mais duras de toda minha vida.

 

Na noite do dia 13 de julho de 2012, Fátima Oliveira, saudosa médica negra e feminista, enviou um e-mail pedindo que eu ligasse para ela no dia seguinte, às 8h em ponto. Ela queria falar comigo a respeito de um diagnóstico da Miriam, minha irmã.

Já no trabalho, pedi licença aos meus alunos, saí da sala e liguei conforme havia combinado. Mal dei bom dia e ela me apresentou o resultado:

“Luana, o câncer da sua irmã é letal e já em estágio avançado. O estado dela é muito grave. Vocês podem se preparar… Não há muito o que fazer. Primeiro, os tumores vão se alastrar pelo corpo inteiro. Depois, ela vai ter que fazer uma traqueostomia para conseguir respirar. Se espalhar pelo cérebro, ela vai perder a consciência. É provável que ela tenha no máximo um ano de vida”.

Ao ouvi-la, fui tomada por imenso vazio. Senti minhas pernas bambas. Passei um tempo em silêncio, olhando para o nada. Primeiro, quis entender o porquê de a doutora Fátima ter sido tão ríspida, tão seca comigo. Em seguida, tentei entender o que ela havia dito. Era como se cada uma daquelas palavras tivesse sido dita por uma estrangeira, em um idioma completamente desconhecido por mim. Quando finalmente entendi, desabei. Minha irmã vai morrer, pensei. Naquele momento, minha maior preocupação era com que a minha mãe não soubesse o real estado da Miriam.

Dada a gravidade do caso, a Miriam deu início ao tratamento no Hospital das Clínicas no dia seguinte. No prontuário, câncer de cabeça e pescoço. Ali se iniciava uma longa caminhada de consultas, exames e muitas, muitas sessões de quimio e radioterapia. O cabelo não demorou a cair. Os enjoos, as náuseas e todos os efeitos colaterais do tratamento também não tardaram a chegar.

Vivi uma espécie de luto antecipado. Definhei. Eu me sentia feito uma alma penada, vagando. Hoje tenho uma infinidade de críticas ao kardecismo, mas não posso deixar de dizer que a religião me deu forças e alguma serenidade para atravessar esse momento tão difícil e doloroso. A escola também. Meus alunos não sabem, mas encontrava coragem e alegria no nosso convívio diário. Serei sempre grata. Sempre.

Miriam entrou em um jogo cujo resultado já estava definido.

“Luana, em 15 anos de profissão, nunca vi um paciente com um quadro igual ao da sua irmã se recuperar”, disse o doutor Munir, que a acompanhou durante todo o processo.

Mesmo com esse prognóstico, minha irmã recebeu toda assistência no HC, hospital mantido pelo SUS. Do início ao fim, foi tratada de maneira digna e acolhedora. Ela fez valer o artigo 196 da Constituição, que justificou a criação do Sistema Único de Saúde em 1988: “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”.

Não fosse o SUS, não sei o que seria dela. Além da minha família não ter condições financeiras de arcar com o tratamento, é certo que um plano de saúde não a aceitaria devido ao estágio da doença. Além disso, é muito comum pessoas que recebem o diagnóstico de câncer na rede privada procurarem o SUS, porque os convênios não cobrem ou se recusam a fornecer determinados procedimentos. Muitos pacientes precisam entrar na Justiça para conseguir atendimento.

Apesar da impossibilidade de cura, Miriam lutou bravamente. Até o fim. Sua travessia se encerrou na manhã do dia 9 de julho de 2013, aos 32 anos. Trezentos e sessenta e dois dias após o telefonema da doutora Fátima. Ela não deixou filhos. Deixou algumas camisas do Galo, nosso time do coração. Deixou uma coleção homérica de livros e revistas de culinária, sua maior paixão, depois do Clube Atlético Mineiro. Deixou a minha mãe. Deixou muita saudade entre aqueles que tiveram o privilégio de conviver com ela ao longo de três décadas.

Trago minha irmã à lembrança, revivo todo o calvário pelo qual ela passou em meio a mais uma tentativa de privatização do SUS. Em função da repercussão extremamente negativa e dos posicionamentos de parlamentares e representantes da sociedade civil contrários à medida, o presidente Jair Bolsonaro se viu obrigado a revogar o decreto 10.530/20, que autorizava a realização de estudos para parcerias entre a iniciativa privada e o poder público para a construção e administração de Unidades Básicas de Saúde (UBS).

É bem verdade que há falhas e dificuldades, que podem e devem ser superadas, sem a necessidade de entregar um patrimônio brasileiro, com importância reconhecida mundialmente, a grupos e empresas que visam somente ao lucro. A pandemia da Covid-19 escancarou uma série de questões, uma delas é o valor do SUS, cuja rede de UPAs, hospitais e laboratórios atenderam a maior parte dos pacientes infectados pelo vírus, formada sobretudo por pessoas pobres e de baixa renda. Sem o Sistema Único de Saúde, a tragédia que se abate sobre nós teria sido ainda maior.

Da Miriam, sinto muita saudade. Em relação a mais essa tentativa de ir contra os princípios que regem a Constituição Federal, tenho uma certeza: quem defende a privatização do SUS frequenta o Albert Einstein e o Sírio Libanês.

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