Cristina Serra

Paraense, jornalista e escritora. Autora, entre outros, de 'Tragédia em Mariana: a História do Maior Desastre Ambiental do Brasil' (Ed. Record)

Opinião

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Que país queremos ser?

Os boiadeiros da Câmara agora estão empenhados em jogar no lixo as regras de licenciamento ambiental. É grave: o futuro de todos os brasileiros está em risco

Que país queremos ser?
Que país queremos ser?
Foto aérea das enchentes causadas por fortes chuvas em Itapetinga (BA), no domingo 26. Foto: Clewton Dias/G4TV Drones/AFP
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O pior Congresso desde a redemocratização está cevando uma “boiada” capaz de nos fazer regredir 40 anos em matéria de proteção ambiental. No que tange à boiada, por assim dizer, vemos uma aliança que reúne, do mesmo lado do balcão, as forças da direita, da extrema-direita e do fisiologismo mais sórdido em torno de um interesse comum: manter o País com os pés fincados no atraso civilizatório. Refiro-me ao Projeto de Lei 2.159/2021, que tramita, de forma subitamente apressada, no Senado. Se aprovado, ele jogará no lixo as regras do licenciamento ambiental no Brasil.

O licenciamento ambiental – processo administrativo obrigatório para atividades econômicas com potencial poluidor – foi uma conquista da democracia, e não podemos perdê-la. O marco primordial dessa construção foi uma resolução do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), de janeiro de 1986, que estabeleceu as regras gerais para o licenciamento. Essa resolução determina a obrigatoriedade da realização de estudos de impacto ambiental, que devem subsidiar os técnicos e autoridades responsáveis pelas licenças e orientar a adoção de medidas mitigadoras, as chamadas condicionantes. O estudo de impacto é tão relevante que os constituintes o incorporaram ao texto da Constituição de 1988.

O que está em jogo neste momento é a destruição do licenciamento, na base do rolo compressor e do correntão do lobby ruralista e empresarial. Duas comissões do Senado, a de Agricultura e a de Meio Ambiente, formularam um texto comum que tem votação prevista para 21 de maio. Se aprovado, o texto segue para o plenário. O argumento dos que defendem rasgar as regras em vigor é o de sempre: desburocratizar o processo e destravar o crescimento do País. Como se o “culpado” pelo atraso fosse o meio ambiente.

A linguagem ambígua e enganosa tenta camuflar o “liberou geral” para as empresas, que leva as digitais dos relatores nas duas comissões, ninguém menos que a ex-ministra da Agricultura de Bolsonaro, senadora Tereza Cristina (PP–MS), e o senador Confúcio Moura (MDB–RO). O PL 2.159/2021 inventa modalidades de licenciamento, todas muito mais rápidas e desreguladas do que as existentes hoje. Permite também renovações automáticas de autorização por meio do simples preenchimento de um formulário na ­internet. Outra facilidade para as empresas seria a reutilização de estudos ambientais anteriores, mesmo no caso de expansão dos empreendimentos. Toda a lógica do texto é a de reduzir o papel do Estado, o controle social e a participação popular na avaliação dos projetos. Não se trata de simplificação, mas de desregulação.

A história recente nos mostra que o problema dos empreendimentos não é o licenciamento tal como existe hoje. Isso é evidente nos três maiores desastres da mineração no Brasil. Em 2015, o colapso da barragem de rejeitos das mineradoras Samarco, Vale e BHP, em Mariana, matou 19 pessoas e contaminou o Rio Doce. Em 2019, o rompimento da barragem da Vale, em Brumadinho, matou outras 272 pessoas e poluiu o Rio Paraopeba.

O terceiro desastre é o do afundamento do solo, em Maceió, causado pela extração subterrânea de sal-gema pela petroquímica Braskem. Um tremor de terra, em 2018, revelou a exploração predatória que obrigou à remoção forçada de 60 mil moradores de cinco bairros. Analisei os processos de licenciamento dos três empreendimentos. Em todos há indícios de conduta ilegal, das empresas e dos agentes públicos que atuaram nos processos, como apresentação de laudo falso, prevaricação, improbidade administrativa. Não é que a lei seja ruim. O problema está nas pessoas que não a cumprem.

Suas excelências, os senhores senadores, deveriam estar mais preocupados com a impunidade nesses três casos. Até hoje, ninguém foi condenado pelos crimes ambientais praticados e pela morte de quase 300 brasileiros. Os processos de Mariana e Brumadinho se arrastam no Judiciário. No caso Braskem, nem sequer há processo de responsabilização criminal. E as vítimas ainda buscam as reparações devidas na Justiça.

É legítimo e importante atualizar leis de caráter geral, inclusive para orientar legislações estaduais e municipais. Mas as mudanças não podem ter como norte facilitar negócios que trituram vidas e sonhos. Infelizmente, no ano em que o mundo inteiro virá ao Brasil para discutir o futuro do planeta, na COP30, em Belém, os parlamentares se mostram capturados pelos interesses das grandes corporações e de costas para os cidadãos. Precisamos nos apropriar do debate sobre o nosso futuro e sobre o país que queremos ser. •

Publicado na edição n° 1362 de CartaCapital, em 21 de maio de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Que país queremos ser?’

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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