Opinião
Que o Natal e o Ano Novo nos tragam renovadas inspirações e motivações
Amar o mundo não é fácil, mas buscar ao menos conhecê-lo melhor pode nos levar a entendê-lo e, quiçá, amá-lo
“O amor é a coisa mais poderosa e, no entanto, ainda a mais desconhecida forma energética do mundo.” – Teilhard de Chardin
Chegar ao final do ano é uma vitória. Foram tantos os obstáculos, tantas as alegrias, mas também tantas as tristezas.
Quantos amigos fizemos? Amigos de verdade, não de Facebook, como uma vez me disse a grande Sônia Braga.
Quantas amizades reforçamos, encontrando os amigos fora das telinhas?
Quantas trocas profundas? Talvez rápidas como com o médico ou a médica que nos atende um uma hora delicada, mas nos trata com um carinho extraordinário.
A vida são esses momentos de oásis afetivos, em que nos sentimos acolhidos em nossa fragilidade, em um mundo submerso em delírio de poder nas relações interpessoais, assim como naquelas internacionais, cuja similaridade entre ambas não pode jamais ser menosprezada.
Importante lembrar que relações afetivas, amorosas em sentido estrito, não mais complexas, mas os amigos são dádiva semelhante a elas.
Surgem, como as relações amorosas, “do nada”. De situações difíceis, como de tardes chuvosas, como o sol depois da chuva, na definição amorosa de William Shakespeare.
Em tarde de chuva, justamente, eu refletia sobre o alívio que pode nos trazer a psicanálise e cheguei à conclusão inusitada de que o processo analítico e a teologia neopentecostal têm em comum o marco temporal: o passado pertence ao erro a que fomos induzidos por nosso inconsciente não incorporado à consciência, no primeiro caso; à ação demoníaca no segundo, em ambos os casos liberando-nos da sensação de culpa, que nos oprime, diminui e retira a capacidade de reagir.
Vale lembrar que existe também um amor pelo coletivo, que se importa com o outro, onde quer que esteja sob opressão, sob a iniquidade e a exclusão.
Dessa forma, Martin Luther King nos recordava: “A injustiça num lugar qualquer é uma ameaça à justiça em todo lugar.”
Como o pastor Henrique Vieira disse em Sobre o Amor (editora Vozes): “O amor não é para o oprimido se tornar opressor, mas para acabar com a relação de opressão. É profundo e revolucionário.”
Nesse sentido, amplia seu alcance até aqueles que nos são contrários: “Amar o inimigo não é uma imposição sobre os afetos e os sentimentos, mas uma decisão de não responder na mesma moeda, de não desumanizar quem nos desumaniza.”
Henrique Vieira complementa essa reflexão, levando a dimensão do amor do particular para o coletivo: “Numa sociedade patriarcal, racista e capitalista, facilmente o conceito de amor é capturado por uma lógica individualista, privatizada e despolitizada. O amor fica circunscrito ao ambiente de um casal, num circuito sentimental, sem nenhuma relação com os dramas e esperanças do mundo.”
Amar o mundo não é fácil, mas buscar ao menos conhecê-lo melhor pode nos levar a entendê-lo e, quiçá, amá-lo.
Em A mística do Instante (editora Paulinas), José Tolentino Mendonça cita Jacques Lacarrière, que assim descreveu aquele que pelo mundo viaja: “O verdadeiro viajante é aquele que, a cada novo lugar, recomeça a aventura do seu nascimento.”
Como bom escritor, Mendonça não deixa de estar atento às limitações e, para isso, cita as Investigações Filosóficas de Ludwig Wittgenstein, que reflete, de forma simplicíssima, sobre elas: “Descreve o aroma do café – Não se consegue por quê? – Faltam-nos as palavras? – E faltam-nos palavras exatamente para quê? Mas de onde vem a ideia de que uma definição assim deva ser possível? – Nunca sentiste a falta de uma definição do gênero? – Procuraste já descrever o aroma do café sem conseguir?”
Em Descolonizando Afetos – Experimentações Sobre Outras Formas de Amar (editora Paidós), Geni Nuñez cita o psiquiatra martinicano Frantz Fanon, que relaciona o amor à história: “Quando falamos de ansiedade, falamos também de certa antecipação. Frantz Fanon, em Os Condenados da Terra, diz que ‘o colonizado está sempre atento porque, decifrando com dificuldade os múltiplos sinais do mundo colonial, jamais sabe se passou ou não do limite.’ Esse estado de alerta também aparece no campo das relações amorosas. Para Fanon, não podemos individualizar o impacto da colonização; é preciso um olhar para a sociogenia dos sintomas.”
Em A Clínica Rebelde – uma Biografia de Frantz Fanon (editora Todavia), Adam Shatz corrobora essa interpretação dos desafios do amor nos trópicos: “A ‘negrofobia’, considerava ele [Fanon], também era difundida entre seus pacientes antilhanos. Eles haviam absorvido um sentimento de inferioridade em sua pele, ‘por interiorização, ou melhor, por epidermização’; a luta para superá-lo era quase indistinguível de um desejo de não ser negro. ‘É normal que o antilhano seja negrófobo’, escrevia Fanon em Pele negra, máscaras brancas. ‘Pela via do inconsciente coletivo, o antilhano assumiu como seus todos os arquétipos do europeu.'”
Que o Natal e o Ano Novo nos tragam renovadas inspirações, motivações e olhares sobre nós mesmos – principalmente – mas também sobre nossos amigos, amores e todo e qualquer habitante deste Globo.
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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