Ingrid Gerolimich

Psicanalista e documentarista. Mestre em políticas públicas, estratégias e desenvolvimento pelo Instituto de Economia da UFRJ, especialista em psicanálise e análise do contemporâneo pela PUC-RS. Integra a Sociedade Psicanalítica Iracy Doyle

Opinião

Que bobagem (e desserviço) é atacar a psicanálise

Natalia Pasternak ganhou notoriedade por conta de sua postura assertiva em defesa da ciência e, portanto, da vacina. Mas isso não me impede de dizer que, a respeito da psicanálise, ela errou feio

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No livro “Que bobagem!: pseudociências e outros absurdos que não merecem ser levados a sério”, que a bióloga Natalia Pasternak escreveu junto com seu marido, o jornalista Carlos Orsi, a psicanálise foi retratada como uma pseudociência, com toda a força pejorativa que este termo possui.

A escolha demonstra não só um equívoco epistêmico, mas uma irresponsabilidade com um campo do pensamento que muito contribuiu para tudo o que se consolidou até aqui em relação ao estudo da mente e da subjetividade humana, mostrando um profundo desconhecimento em relação à inegável influência da psicanálise nos diversos espaços do saber, inclusive, na própria psicologia. Além disso, desconsidera por completo as inúmeras pesquisas que demonstram a eficácia científica da psicanálise.

Em entrevista recente, Pasternak e Orsi chamam Freud de publicitário de si mesmo e comparam seu trabalho a uma “Disneylândia discursiva”, além de utilizarem no livro frases como: “a psicanálise é como homem-bomba, se explodir, leva todo mundo junto”. O que fica parecendo é que tais comparações saíram de manuais de marketing da “lacração”, que abusam de um léxico provocativo e sensacionalista para criar polêmicas capazes de disputar os trending topics da sociedade do espetáculo, produzindo informações como fast food.

Com isso, a bióloga e o jornalista falham em promover qualquer debate mais profundo sobre o tema, assim como falham com a própria divulgação científica que pretendem promover, demonstrando o quão rasos e nada científicos são os argumentos que levantam.

Natalia chegou a afirmar que discordar dela é discordar de diversos autores importantes – como se isso fosse o atestado necessário para pôr fim a qualquer dúvida a respeito de suas afirmações. O que acontece é que esta declaração não é nem de longe um argumento científico. Parte de uma pretensa autoridade que, sabemos, que os autores não possuem a respeito da psicanálise. E, ironicamente, recorrer ao discurso da autoridade é justamente depor contra a ciência – pois, só há ciência se houver espaço para refutação, de acordo com o próprio conceito da falseabilidade de Karl Popper, de onde Pasternak e Orsi bebem da fonte.

A influência da psicanálise nos espaços de produção acadêmica é incontestável e, apesar disso não a configurar como ciência stricto sensu, tal influência obviamente tem sua importância. Afinal, é difícil imaginar que uma pseudociência com ares de charlatanismo teria tamanho poder sobre grandes mentes do pensamento humano, nos mais diversos campos do saber.

Este argumento de que tantos intelectuais teriam caído como “patinhos” no engodo do culto à psicanálise, porém, parece plausível para os autores quando emitem as seguintes opiniões:

“A psicanálise se beneficiou de uma série de conjunturas históricas, que vão desde o gênio publicitário de Freud (que conseguiu “se vender” como descobridor do inconsciente, por exemplo) até a queima de seus livros pelos nazistas, o que revestiu a doutrina de uma aura heroica, aos olhos dos intelectuais da época.”

“Depois da Segunda Guerra, principalmente na França, filósofos começaram a incluir conceitos psicanalíticos em suas análises políticas e literárias, transportando as ideias de Freud do campo clínico para o da cultura. O que as manteve “respeitáveis” por razões extra-científicas, mais ligadas a tradição e hábitos intelectuais.”

Me parece um tanto ingênuo investir na psicanálise este poder de lavagem cerebral sobre as instituições acadêmicas mais importantes de todo o mundo. E, para além disso, não é correto afirmar que as práticas psicanalíticas não permitem mensuração. Há pesquisas sérias que, não só mostram a eficácia da psicanálise, como apresentam resultados positivos desse método em comparação a terapias como as do tipo cognitivo comportamentais, tão em voga nos dias de hoje. Uma boa mostra disso está neste artigo do professor do Instituto de Psicologia da USP, Rogério Lerner.

Do outro lado, as terapias da linha comportamental, inspiradas no método Pavlov, preenchem os requisitos dos autores para serem classificadas como ‘ciência’. essas abordagens, no entanto, são amplamente criticadas por sua mentalidade gerencialista, colocando mais ênfase no ajuste comportamental em si e menos no aprofundamento de uma consciência crítica em relação ao porquê de determinados comportamentos.

Isso nos leva a um outro debate, que é a apropriação de certos espaços da psicologia pelo modelo econômico neoliberal de gestão das subjetividades. Por isso, outro ponto crítico do que dizem Natalia Pasternak e Carlos Orsi é a que a “psicanálise já foi completamente desbancada em países como Estados Unidos”, sem se darem conta de que isto pode depor mais a favor do que contra a psicanálise – já que os EUA são um verdadeiro case a respeito de como interesses econômicos e corporativos têm influenciado e direcionado pesquisas científicas, muitas vezes em detrimento do bem-estar público e do interesse social.

A relação entre a epidemia de diagnósticos de TDAH e a indústria farmacêutica americana é uma amostra dessa relação utilitarista da ciência, em particular a venda de medicamentos como a Ritalina (metilfenidato). Logo, utilizar o exemplo dos EUA para reforçar qualquer estereótipo em relação à psicanálise denuncia falta de entendimento a respeito das lutas travadas no campo da psicologia contra o modelo americano de gestão do sofrimento psíquico.

Natalia Pasternak ganhou notoriedade a durante a CPI da Covid-19 por sua postura assertiva em defesa da ciência – e, portanto, da vacina – em um momento bastante trevoso para a ciência brasileira. Em meio a delírios conspiratórios que demonizavam o imunizante, ela usou sua voz contra o surto coletivo mortífero que se instalou no país. E, por isso, tem meu respeito e admiração. Mas isso não me impede de dizer que, a respeito da psicanálise, ela e Orsi erraram feio. E, pior, erram naquilo que não poderiam errar, pois a maneira sensacionalista como estão conduzindo este debate pode ter o efeito contrário do esperado. O livro acaba flertando com um cientificismo dogmático em tempos dos quais precisamos de unidade e foco para seguir defendendo o conhecimento científico contra o extremismo e negacionismo,

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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