

Opinião
Quando um jovem morre na periferia, o que morre com ele?
Dos crimes de maio de 2006 às chacinas recentes, o genocídio da juventude negra arrasta consigo direitos, políticas públicas e o futuro de toda a sociedade


A recente decisão do ministro Teodoro Silva, do Superior Tribunal de Justiça, ao reconhecer os crimes de maio de 2006 como graves violações de direitos humanos e votar contra sua prescrição, é mais do que um gesto jurídico: é uma fresta aberta em quase duas décadas de silêncio. Mas a pergunta que ainda ecoa é: por que tivemos que esperar 19 anos para que a Justiça comece a enxergar o óbvio?
Entre os dias 12 e 21 de maio de 2006, o Estado brasileiro transformou São Paulo em um campo de extermínio. Mais de 560 pessoas foram mortas, a maioria jovens negros e periféricos, alvejados sob o manto da “guerra ao crime”. Chamamos de Crimes de Maio, mas poderíamos chamar de aviso: um recado do Estado de que, quando a ordem se vê ameaçada, o corpo do jovem da quebrada vira expiação.
Essa lógica não se restringiu a 2006. Ela se sofisticou. Basta lembrar da Operação Escudo, em 2023, que deixou ao menos 28 mortos na Baixada Santista. Ou para a chacina de Paraisópolis, quando nove jovens morreram pisoteados após a ofensiva policial a um baile funk. A mesma engrenagem se repete: morte como espetáculo pedagógico. Matar reconfigura territórios, muda a forma como uma comunidade inteira se move, se diverte, se relaciona com a rua. Quando um jovem morre, morre também o direito ao lazer, à convivência, à liberdade de ir e vir.
As chacina são políticas pública não declaradas. São um instrumento de controle social que diz, em alto e bom som, quem pode existir e quem precisa ser disciplinado pelo medo. A cada nova chacina, essa pedagogia da violência se reforça.
O efeito é duradouro. Uma chacina reorganiza a vida coletiva por décadas. Os filhos das vítimas crescem sob o trauma; as mães, como as Mães de Maio, transformam luto em luta, mas carregam cicatrizes que o Estado nunca reparou.
Precisamos mapear o ciclo das chacinas Rio-São Paulo. Não apenas como dados de letalidade, mas como ferramenta política. Elas não são desvios, são engrenagens de um sistema que usa a morte como recado. O encarceramento em massa, a expansão de tecnologias de vigilância, a CPI do Pancadão em São Paulo, tudo isso faz parte da mesma matriz: controlar corpos negros e periféricos, ora pela prisão, ora pelo monitoramento, ora pela execução sumária.
Quando um jovem é morto na periferia, não é só sua vida que se perde. É o direito de sua família ao luto digno, o direito de seus amigos à memória, o direito da comunidade ao lazer, à cultura, à esperança. Morre também um pedaço da democracia, porque uma sociedade que naturaliza chacinas não pode se chamar democrática.
O voto do ministro Teodoro Silva abre uma possibilidade: a de que esses crimes não se percam no arquivo morto da impunidade. Mas é preciso ir além. Reconhecer a imprescritibilidade é apenas o primeiro passo. O Brasil deve encarar de frente o fenômeno da chacina como parte de sua estrutura de segurança pública e desmontá-lo.
Porque, enquanto aceitarmos que a morte seja a linguagem com que o Estado conversa com as periferias, estaremos assinando, todos os dias, novas sentenças de morte para os direitos de uma geração inteira.
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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