Amarílis Costa

Advogada, doutoranda em Direitos Humanos na Faculdade de Direito USP, mestra em Ciências Humanas, pesquisadora do GEPPIS-EACH-USP, diretora executiva da Rede Liberdade.

Opinião

Quando a democracia avisa e ninguém escuta

Sem memória ou justiça, o autoritarismo de 1964 nunca terminou e segue ameaçando o futuro democrático do país

Quando a democracia avisa e ninguém escuta
Quando a democracia avisa e ninguém escuta
Hamilton Mourão e Jair Bolsonaro. Foto: Tércio Teixeira/AFP
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A tentativa de golpe de Estado bolsonarista não é mais uma teoria conspiratória. Ela foi articulada, planejada e quase executada, como demonstram as 900 páginas do relatório da Polícia Federal. O documento revela uma rede organizada de núcleos operacionais, jurídicos e de desinformação que visavam desestabilizar o Estado Democrático de Direito. A ameaça foi conduzida por quem deveria proteger as instituições democráticas, mas escolheu conspirar contra elas.

O Brasil tem uma história marcada por períodos de autoritarismo e rupturas democráticas. Desde a Proclamação da República, passando pela ditadura Vargas e o regime militar de 1964, alternou entre ciclos de repressão e democracia. O golpe militar não foi um evento isolado: deixou raízes profundas que moldaram o tecido social, político e cultural brasileiro.

Oficialmente, o regime militar terminou em 1985, sua lógica de repressão e silenciamento, contudo, persiste em uma transição democrática incompleta. A Lei da Anistia, de 1979, simboliza esse pacto de silêncio. Ao perdoar torturadores e violadores de direitos humanos, a lei enviou uma mensagem de que o autoritarismo poderia ser esquecido. Essa negligência histórica permitiu que cenas como as de 8 de janeiro de 2023 se tornassem possíveis: um ataque explícito às sedes dos Três Poderes em plena luz do dia.

Os planos de assassinato de lideranças democráticas, incluindo o presidente e ministros do Supremo Tribunal Federal, representam o ápice dessa lógica nunca enfrentada. Não é aceitável que um país trate com indiferença a tentativa articulada de eliminar líderes que sustentam as instituições. Esse descaso reflete a fragilidade do pacto social brasileiro e uma complacência histórica com a impunidade.

O governo de Jair Bolsonaro manifestou de forma explícita que os valores do golpe de 1964 ainda estão vivos. Desde sua exaltação a torturadores, como Carlos Alberto Brilhante Ustra, até o desdém pelas instituições democráticas, Bolsonaro normalizou discursos autoritários. Durante seu mandato, políticas públicas baseadas em desinformação e ataques ao sistema eleitoral reacenderam a lógica do golpe, promovendo a ideia de um Brasil governado pela força e pela repressão.

Como destacou Lélia Gonzalez durante a Assembleia Constituinte, o Brasil vive sob uma “democracia ilusória”: “Até aqui as Constituições brasileiras não foram mais que conversas entre brancos. As elites e os militares levaram à risca o velho ditado popular: “Eles são os brancos que se entendam”. E se entenderam. As coisas, porém, já não podem ser assim. A próxima constituinte terá de incluir, no novo pacto social, o entendimento do que negros e índios pensam sobre como deve ser a organização da sociedade. A conversa terá de ser democrática, plurirracial e popular”.

O racismo estrutural é essencial para compreender as ameaças à democracia brasileira. Desde o golpe militar até os dias atuais, o autoritarismo tem se reforçado pela exclusão de vozes negras e indígenas. A tentativa de golpe recente demonstra como a desinformação e os ataques às instituições frequentemente deslegitimam políticas inclusivas e movimentos sociais.

Anistiar os responsáveis pelo golpe seria repetir erros do passado. Este momento exige que o Brasil redefina o significado de democracia. Não basta garantir eleições periódicas, é necessário construir um sistema que acolha a diversidade de vozes e enfrente as desigualdades estruturais.

O Brasil de 1964 não terminou. Ele persiste nas estruturas de poder, no racismo estrutural, nas hierarquias sociais e no medo do diferente. O silêncio sobre os crimes da ditadura permitiu que a lógica do “inimigo interno” – explorada pelos militares – se perpetuasse. Hoje, o inimigo é novamente construído: o comunista, o defensor de direitos humanos, o ativista ambiental, os indígenas.

As cenas de 8 de Janeiro refletem uma sociedade que nunca rompeu com o autoritarismo. A tentativa de invadir e destruir as sedes dos Três Poderes simboliza mais do que um ataque físico: representa o colapso do pacto social mínimo que sustenta uma nação. O Brasil precisa reconhecer que os ataques à democracia não começam com tanques nas ruas ou discursos inflamados. Eles nascem da omissão e da normalização do inaceitável.

Responsabilizar os envolvidos no golpe de hoje e do passado é essencial. Essa tarefa não se limita à Justiça, mas também busca garantir que o autoritarismo nunca mais encontre espaço para prosperar. A construção de um futuro democrático exige coragem para enfrentar o passado e firmeza para barrar ameaças no presente. Que o Brasil escolha a justiça e a democracia como princípios inegociáveis.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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