Opinião

Protestos colocam em xeque a credibilidade da liderança dos EUA

Nenhum diplomata americano gosta da palavra império. Ela é maldita aos olhos de uma república que nasceu de uma ruptura colonial

Protesto em Nova York pelo movimento "Black Lives Matter". Foto: Angela Weiss/AFP
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O assassinato de George Floyd pela polícia de Minneapolis e os episódios que se seguiram, entre os quais a prisão ao vivo de um jornalista de televisão negro que cobria os protestos, representam um pouco mais que uma crise interna e nacional. Eles têm igualmente uma dimensão geopolítica na medida em que colocam em causa a credibilidade da liderança dos EUA no plano internacional. Não há política externa e política interna. Há simplesmente uma política que tem consequências na imagem internacional do País, em particular quando este reclama para si o estatuto de “nação indispensável”.

Uma das formas de se perceber a gravidade do que aconteceu é pensar no que a imprensa ocidental diria se o episódio fosse na China, com um polícia chinês, com jornalistas chineses e com o presidente chinês. Não seria bonito. A ideia de que a brutalidade policial é menos grave por se passar nos Estados Unidos parece-me demasiada ingênua – na verdade, o que se passou é mais grave justamente porque põe em causa um dos pilares da política externa norte-americana, o valor universal dos direitos humanos.

Em julho de 2014, Eric Garner foi estrangulado pela polícia de Nova York, enquanto estava deitado na estrada e repetia as mesmas palavras que ouvimos agora – não consigo respirar. Seis anos depois, o mesmo negro, os mesmos polícias brancos, o mesmo joelho no pescoço, as mesmas palavras. Há mais de 50 anos, a mesma fotografia em Birmingham, os mesmos polícias brancos, o mesmo joelho no pescoço. Dessa vez a vítima era uma mulher negra. É muito difícil levar a sério a teoria geral do caso isolado ou das maçãs podres. Os EUA têm um problema sério de racismo institucional e sistêmico. 

 

 E isso é muito sério para uma nação que deseja construir e liderar uma ordem mundial baseada na promoção dos direitos humanos. E, depois, as palavras do presidente. Isso talvez seja o pior. Acontecimentos que exigem o máximo de delicadeza, sabedoria e reflexão por parte dos responsáveis políticos são imediatamente transformados em instrumento eleitoral. O presidente não vê qualquer adversidade no que aconteceu. Ao contrário, vê no episódio uma oportunidade. Não pensa em resolver o problema, mas em alargá-lo, para virá-lo a seu favor.

Eis a luz ao fundo do túnel eleitoral: mobilizar a América, ou, melhor dito, a sua América, contra os que protestam. Não lhe ocorre nada melhor do que a escalada – os militares estão prontos a intervir, diz ele. Mais ameaças e mais violência. O cálculo político que faz é que talvez isto o tire das cordas, acossado pelas sondagens resultantes da gestão catastrófica da crise sanitária. Ele, só ele, sempre ele, nada mais conta senão ele próprio. O que fica exposto aos olhos do mundo é uma liderança egocêntrica que gosta de agradar à extrema-direita e aos que apelam à violência como método político. Uma visão deprimente para quem aspira à liderança mundial.

Nenhum diplomata dos EUA gosta da palavra império. Ela é maldita aos olhos de uma república que nasceu de uma ruptura colonial. Os termos a usar devem ser outros, como liderança, primazia, hegemonia. Gosto da forma como o diz Michael Ignatieff , quando escreve que, se os norte-americanos têm um império, ele foi  adquirido num estado de “profunda negação”. É necessário, no entanto, lembrar que nenhum império moderno sobreviveu apenas com base na sua força militar ou no seu poder econômico. Ao longo da história mundial, todos procuraram sustentação no apelo a uma ideia universal – a Espanha com o cristianismo, a Inglaterra com o livre-comércio, os EUA com a democracia e os direitos individuais. Agora, com as atitudes irresponsáveis do seu presidente, os Estados Unidos parecem estar irremediavelmente a deitar fora o que de melhor tinham para oferecer – uma cultura política fiel aos valores da liberdade, da justiça e da tolerância. A visão de si próprios como “cidade no topo da colina” capaz de iluminar o mundo e inspirar os outros aparece agora ridicularizada.

O caos na gestão da pandemia, as falsidades inventadas pelo próprio presidente sobre a origem humana do vírus e a responsabilidade chinesa, e, agora, as revoltas populares contra o racismo policial são sinais sérios de um certo crepúsculo do século americano. Elas sucedem a uma década em que assistimos à invasão do Iraque sem casus belli e ao escândalo do uso da tortura contra prisioneiros de guerra.

Alguns anos atrás, um senador dos EUA, depois da divulgação de um relatório sobre a participação da CIA em planos para assassinar líderes estrangeiros, perguntava: “Em que é que nos tornamos?” Fazer a pergunta é uma forma de responder. Como é igualmente uma bela resposta ver os polícias de Miami ajoelhando e rezando em frente aos manifestantes. O que se passou nesta semana não é apenas uma tragédia americana. De certa forma é uma tragédia ocidental.

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