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Prioridades trocadas: a vida no centro da segurança pública

Em fim de semana que traz o resultado da política de segurança imposta, PM da Bahia causou a morte de uma criança e um adolescente

Prioridades trocadas: a vida no centro da segurança pública
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A vida não é o valor fundamental para a segurança pública no Brasil. Em média, apenas 8% dos homicídios dolosos são resolvidos. Nas prisões, onde cerca de 40% estão, em flagrante ilegalidade, “cumprindo” uma pena provisória, cerca de 13% são acusados de crimes contra a pessoa. Apenas 5% por descumprimento do Estatuto do Desarmamento. Em compensação, 45% são acusados de crimes contra o patrimônio. Cerca de 30%, no geral, e entre mulheres 62%, acusadas de tráfico de drogas, a ampla maioria presa em flagrante, desarmada, não agia com violência e não estava vinculada a organizações.

Essas prioridades “trocadas” são um quadro da instrumentalização do Estado para gestar interesses, lucrar sobre o medo, controlar territórios, e impor a morte como política. E não ter a vida de todas como prioridade é também dizer que a vida dos profissionais da segurança não será prioridade.

O sociólogo Luiz Eduardo Soares, na obra “Desmilitarizar: Segurança Pública e Direitos Humanos”, nos alerta sobre uma questão necessária e que deveria ser óbvia. As polícias militares são auxiliares e reserva do Exército (artigo 144, parágrafo 6, da CF). Nesta condição, respondem a dois comandos e códigos distintos: o Exército, responsável pelo “controle e pela coordenação” e as Secretarias de Segurança, responsáveis pela “orientação e planejamento”.

Nesta duplicidade, códigos penalizam “o cabelo comprido, o coturno sujo e o atraso com a prisão do soldado, mas acabam sendo transigentes com a extorsão, a tortura, o sequestro e o assassinato”. O dever das polícias é (ou deveria ser) prover segurança, a do Exército é o pronto emprego de ações destinadas à defesa nacional.O pronto emprego da violência pela polícia como atividade cotidiana não tem, portanto, relação com os princípios da segurança pública no Estado democrático de direito.

Em 2019, foram 6.357 mortes decorrentes de ações policiais no país. No Rio de Janeiro, a polícia matou 1.814 pessoas, na Bahia 650, e em São Paulo 815. A Rede de Observatórios da Segurança publicou no ano passado o relatório A cor da violência policial no Brasil: A bala não erra o alvo. Na Bahia, 97% das pessoas assassinadas pela polícia em 2019 eram negras. A cada dia, ao menos duas crianças e adolescentes são mortos pela polícia no país. Nos últimos três anos, policiais mataram ao menos 2.215 crianças e adolescentes. E a vida, desvalorizada, o corpo e a comunidade desumanizados, em nome do modelo de guerra de Estado, não afetam apenas civis.

Dados do 14° Anuário Brasileiro de Segurança Pública, lançado no ano passado, demonstram que morreram mais policiais por suicídio do que em confrontos no ano anterior. Dentre os agentes assassinados 61,5% eram negros e 34,9%, brancos.

No mesmo ano, 62 policiais morreram em serviço e 91 cometeram suicídio. Ainda são precários os dados sobre essa questão, sobretudo por uma cultura institucional que, ao invés de acolher as questões da saúde mental dos seus agentes, pune e estigmatiza os que buscam apoio. O convívio cotidiano com a violência e a morte, as condições extenuantes de trabalho, privação de sono, a hierarquia rígida, punitivista e degradante, a ausência de convívio comunitário e a ausência de condições reais de tratamento criam o pior dos cenários para uma pessoa que, por exemplo, tem acesso a um fuzil e uma viatura, o respaldo da própria instituição e um judiciário incentivador da produção de mais violências. 

Em um final de semana, uma criança e um adolescente foram mortos pela PM da Bahia. Foto: Fernando Vivas/GOVBA

Em um fim de semana, na cidade de Salvador, uma criança foi assassinada pela polícia na porta de casa. Um dia depois, na cidade de Feira de Santana, mais um adolescente assassinado pela polícia, desta vez no quintal da própria casa. No mesmo dia em que na capital baiana, um policial armado de fuzil tomou um dos principais pontos turísticos, efetuou diversos disparos, e ao final, foi tragicamente morto pela própria polícia, depois de três horas de negociação. No final de semana anterior a estes eventos, foram registrados 16 homicídios na capital e região metropolitana.

Em todos os casos há um denominador comum: a política de segurança baseada na guerra, no confronto, na violência, na desumanização e no racismo, que não funciona para o povo.

Mas se ela continua em curso há décadas é porque está funcionando para alguém. Em sua base estão as raízes da colonialidade, onde as ideias de crime, castigo, punição e justiça foram construídas nos quintais da Casa Grande. Neste lugar, a produção de mortes não é decorrência de erro, ela é coluna central da distribuição racialmente orientada de possibilidade de vida, ela é organizadora da condição de humanidade, ela é definidora do orçamento público, e mantenedora das condições de desigualdade. Ela permite vender, lucrar, restringir, privilegiar, concentrar. 

É dramática a condição de saúde mental das pessoas que trabalham na segurança pública. Disponibilizar mais profissionais do cuidado não afetará esse quadro se não houver mudanças na cultura institucional da corporação, mas sobretudo se não mudar a própria corporação. Há inúmeros motivos para as mudanças necessárias, inclusive dentro da própria polícia militar, onde, por exemplo, 77% dizem não concordar que as polícias militares e os corpos de bombeiros militares sejam subordinados ao Exército, como forças auxiliares. As comunidades negras vivem em um estado de tensão permanente.

Enquanto a prioridade para o Estado não for a proteção da vida, de todas as pessoas, teremos mais fins de semana trágicos como o que tivemos em Salvador. Quem lucra com a nossa morte não se importa com a tragédia, e incentiva confrontos como resposta. Quem mata o policial e a criança é a guerra. É o lucro. É o ódio antinegro. Na data de aniversário de 472 anos da cidade, Lazzo Matumbi já tinha literalmente “cantado a pedra”: Eu sou parte de você, mesmo que você me negue.

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