Opinião

Primavera contra a blindagem

Da PEC inconstitucional às sanções arbitrárias, o jogo do poder revela sua farsa. Mas também há brechas por onde a sociedade se reencontra e resiste

Primavera contra a blindagem
Primavera contra a blindagem
Organizações e movimentos sociais realizam atos contra o projeto de Anista aos golpistas de 8/1 e a PEC da Blindagem, que busca dar ao congresso a prerrogativa de autorizar abertura de processos contra parlamentares. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
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“Aquilo que eu não sei é a minha melhor parte.”
— Clarice Lispector

Buscamos serendipidade, que a vida nos surpreenda. Mas pouco espaço damos a isso.

No dia 21 de setembro, véspera da entrada da primavera e Dia da Árvore, o Brasil demonstrou sua força e vitalidade: milhares de pessoas se reuniram em todo o país contra a PEC da Blindagem, que cria cidadãos de primeira classe — os parlamentares — e de segunda, todos os demais 220 milhões de brasileiros e brasileiras.

Os primeiros só poderiam ser processados com autorização dos pares, cujos princípios éticos já são por demais conhecidos… A proposta é claramente inconstitucional, uma vez que contradiz o caput do artigo 5º da Constituição, que estabelece que todos são iguais perante a lei.

A maracutaia visava blindar deputados investigados pela apropriação indébita de emendas parlamentares, entre outras roubalheiras. Também há casos de subtração de salários de assessores em proveito próprio — crime pelo qual foi processado o atual senador Flávio Bolsonaro. Lembremos que o ex-presidente Bolsonaro tem 107 imóveis em seu nome, dos quais 51 foram comprados em dinheiro vivo.

Vale notar, mais uma vez, o alinhamento das extremas-direitas em âmbito internacional: foi justamente essa isenção de imputabilidade que Trump obteve de sua Suprema Corte (o pronome possessivo, aqui, tem duplo significado). Assim, pode cometer qualquer ato delitivo durante o exercício da presidência sem ser julgado ou condenado.

Entretanto, a extrema-direita brasileira não parece compreender que o Brasil e outros países do Sul passam por um processo de descolonização, enfrentando as velhas metrópoles do Norte e recusando-se a oferecer, mais uma vez, o sangue de seus filhos e filhas sugado por mais de cinco séculos.

É nesse espírito que vemos manifestações em Paris de cidadãs e cidadãos congoleses denunciando a Apple pela extração, em regime semelhante ao trabalho escravo, de coltan — terra rara da qual o Congo detém 70% das reservas mundiais — e de cobalto, ambos fundamentais para a fabricação de celulares.

Malgrado sua riqueza mineral, o Congo permanece entre os países com menor índice de desenvolvimento humano do mundo. Suas riquezas são sistematicamente expropriadas pelos Estados Unidos e pela Europa Ocidental, que fomentam guerras civis para facilitar o saque.

No Brasil, o rearranjo das forças políticas chega a situações caricatas. O deputado Paulinho da Força (ou da Farsa) foi procurar dois promotores do golpe de 2016, Michel Temer e Aécio Neves, para discutir a dosimetria das penas dos golpistas de 2002. Seria para rir, se não fosse para chorar.

Há, porém, um lado bom nessa pantomima: ela deixa claro que o atual desgovernador de São Paulo já não apita mais nada. De tantas trapalhadas, perdeu a credibilidade até mesmo da direita, restando-lhe apenas a base da extrema-direita — aquela que dialoga com pneus e ETs.

O sinal é evidente: na ausência de interlocução no Palácio dos Bandeirantes, a direita foi obrigada a recorrer a dois inexpressivos golpistas. Foi o que restou no cardápio indigesto dos antidemocratas.

Do lado do imperialismo, mais sanções, desta vez contra a esposa do ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes. A cartilha da extrema-direita segue cada vez mais à risca o modus operandi da máfia italiana: aplicam a vendetta trasversale, a vingança transversal, que atinge os parentes de quem ousa romper o pacto de silêncio. Uma das práticas mais abjetas do crime organizado.

A isso chegou o desgoverno dos EUA. Pior: essa máfia travestida de governo busca atingir um homem de centro, corajoso, que demonstrou inúmeras vezes que não se dobra nem se vende ao arbítrio.

Com tanta desinformação disseminada pelo desgoverno ianque, fica cada vez mais patente que no mundo existem coisas inúteis — e existe a embaixada estadunidense. Para consolo, a do Reino Unido não fica muito atrás.

Há um meme antológico do site satírico The Onion que afirma que Trump passou toda a visita à Inglaterra tentando se lembrar de onde conhecia o príncipe Andrew. Como ambos frequentaram Jeffrey Epstein, que traficava meninas menores de idade para a satisfação de pedófilos, não se pode excluir que tenham se cruzado por aquelas bandas.

Em A Hora da Estrela (Rocco), Clarice Lispector coloca na boca do narrador da epopeia da brasileiríssima Macabéa a seguinte reflexão:

“Se o leitor possui alguma riqueza e vida acomodada, sairá de si para ver como é às vezes o outro. Se é pobre, não estará me lendo porque ler-me é supérfluo para quem tem uma leve fome permanente. Faço aqui o papel de vossa válvula de escape da vida massacrante da média burguesia. Bem sei que é assustador sair de si mesmo, mas tudo o que é novo assusta.”

Filosofando, a personagem Macabéa já refletia:

“… já que sou, o jeito é ser.”

Não nos assusta sermos, com todos os dons e deficiências que temos? Não nos atemoriza amar a ponto de desejar mais a felicidade do outro do que a própria?

Sair de si, amar… não é essa a felicidade última, e também a mais difícil de alcançar, tanto no plano individual quanto no coletivo?

Abramos portas e janelas. Chegou a primavera. Que floresçam todas as flores, de todas as cores.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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