

Opinião
Pretinha, a musa
Em viagem pelo Ceará, para a Copa Estadual da Reforma Agrária, pude ver as pessoas, em todos os lugares, atrás de fotos e autógrafos da jogadora Danielle Felício


Mas a razão da explosão de luz foi a Pretinha. Foi impressionante, para dizer o mínimo, o reconhecimento da Pretinha por rigorosamente todos os lugares por onde passamos – dos aeroportos aos assentamentos de sem-terras no interior do Ceará.
Pessoas de todas as gerações, em todos os ambientes, acorriam à Pretinha em busca de autógrafos e fotos.
Pode ser que eu pareça ranzinza ou que esteja sendo chato ao bater na tecla de que o futebol, pelo menos entre nós, anda difícil de assistir. Mas sou, na verdade, um otimista. E tenho minhas razões para insistir nesse tema.
No outro dia, citei os três craques que sustentam a minha crença na arte do futebol:
Ganso, do Fluminense, Gustavo Scarpa, do Palmeiras, e o uruguaio Arrascaeta, hoje meio-campista do Flamengo.
Vou continuar garimpando para encontrar mais alguns que se destaquem pelo bom trato com a “redonda”. Se a bola tem essa forma é para ser tratada com carinho, para rolar no campo. A bola não foi feita para levar os pontapés que tem levado de alguns trogloditas que andam tão prestigiados.
Essa história vem de longe e passa pelas palavras de ordem que vão se sucedendo umas às outras. Mas essas palavras não bastam para disfarçar a truculência em moda. Fomos passando da tradicional marcação para outra pegada, marcada pela intensidade – são colocados, à frente do time, verdadeiros cães de guarda.
A má ideia de impedir o jogo contraria a própria essência do futebol, que é o gol – palavra de origem inglesa que significa meta, objetivo. Não há coisa mais chata que um jogo sem gols. Mesmo sendo a partida bem jogada, deixa um sentimento de frustração.
No fim das contas, se sobressaem aqueles que chamam a bola como Didi a chamava: “Ajeita a criança com carinho” ou “Mete uma curva que ela vai lá direitinho”. Os exemplos são muitos. Só entre nós, no futebol contemporâneo, temos os exemplos de Maradona e Messi, os Davis na selva dos Golias gigantes.
Mesmo entre os zagueiros, encarregados de impedir o êxito dos atacantes, a história não nos deixa esquecer os maiorais Domingos da Guia e Nilton Santos – para citar apenas alguns dos nossos.
Esta semana, estive viajando pelo Ceará, convidado pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) para a abertura da 2ª Copa Estadual da Reforma Agrária, a ser disputada por 50 equipes masculinas e femininas de todos os assentamentos. O evento marcou um momento especial, com alegria muito própria daquele estado ensolarado.
Fui na companhia do Nando Antunes e da Pretinha – a Danielle Felício –, a brilhante pioneira da Seleção Brasileira de futebol feminino. Nando, o primeiro jogador brasileiro anistiado, dedica-se hoje, principalmente, à pintura, um de seus talentos, que só perde para a sua capacidade de construir um império de amigos. Mas a razão de toda a exaltação foi mesmo a Pretinha.
Presenciar essas cenas foi, para mim, uma revolução. Eu não tinha consciência da profundidade já alcançada pelo futebol feminino no Brasil. Me parece animadora a perspectiva do futebol mesclado, no qual tanto acredito.
Acredito também, cada vez mais, na proximidade da profissionalização do futebol integrado. Em tempos de respeito à diversidade, vejo como simples problema de adaptação, ou mesmo da aplicação rigorosa, das regras do “association”.
Por falar nisso, abraçados pela conhecida hospitalidade cearense, tivemos a oportunidade de assistir ao “choque-rei” entre Ceará e Fortaleza, um espetáculo de vibração e beleza das torcidas não correspondido em campo pelas equipes. Ambos os times apresentaram o mesmo futebol pasteurizado que, por toda parte, tem dado a tônica.
A partida serviu, para mim, como a comprovação matemática deste momento. Houve tantos choques e quedas que o jogo teve 17 minutos de acréscimos (9 no primeiro tempo e 8 no segundo). Um jogador saiu de campo em uma ambulância. Nada diferente do que tem ocorrido Brasil afora.
A compensação veio logo em seguida, com a visita ao Centro de Treinamento e à sede do Ceará S.C., outra surpresa transformadora para mim. Trata-se de um clube bem estruturado, com os mais atualizados recursos da atualidade tanto em termos materiais quanto de conceitos. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1222 DE CARTACAPITAL, EM 24 DE AGOSTO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Pretinha, a musa”
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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