Cláudio Couto

Cientista Político na FGV-EAESP

Opinião

assine e leia

Prêmio para a oposição

Considerações sobre o Nobel da Paz concedido à venezuelana María Corina Machado

Prêmio para a oposição
Prêmio para a oposição
A líder oposicionista María Corina Machado, em manifestação em Caracas, em 9 de janeiro de 2025. Foto: Juan Barreto/AFP
Apoie Siga-nos no

Causou comoção e muito debate a concessão do Nobel da Paz à líder oposicionista venezuelana ­María Corina Machado. A polêmica em torno da premiação deve-se à combinação de um conjunto de fatores: 1) a atuação de ­María Corina na oposição ao chavismo; 2) a homenagem prestada por ela a Donald Trump após o recebimento do prêmio; 3) suas posições conservadoras; e 4) outras premiações controvertidas do Nobel.

Os dois últimos pontos não merecem consideração. Quanto ao conservadorismo, vale dizer que posições ideológicas à esquerda ou à direita não são critério para justificar ou não a premiação, pois tais preferências são legítimas em sociedades pluralistas. Quanto a outras premiações controvertidas (como os Nobel concedidos a Barack Obama ou ­Henry ­Kissinger), faz pouco sentido avaliar a escolha de agora com base nas outras. Se aquelas foram equivocadas, não é por isso que esta também será.

Vejamos os demais pontos:

A atuação na oposição venezuelana

Como adversária do chavismo, María Corina diversas vezes posicionou-se problematicamente, como no efêmero golpe de Estado que, em 2002, apeou do poder por 48 horas Hugo Chávez – ele mesmo, aliás, um golpista fracassado. À época, a Venezuela já era uma protoditadura e o chavismo havia recorrido a vários expedientes autoritários para sufocar a oposição e concentrar poder. Foi assim na convocação de um plebiscito para estabelecer uma Assembleia Constituinte sem autorização legal para tanto. Foi, depois, com a própria Constituinte de ampla maioria chavista se convertendo num absolutismo eletivo, subordinando a si todos os demais poderes (e no Executivo estava Chávez) sob a alegação falaciosa de que a Constituinte era soberana (era para escrever uma Constituição, não para governar).

Quando aquele golpe ocorreu, contudo, a deterioração autoritária produzida pelo chavismo era ainda insuficiente para caracterizar o regime como plenamente autoritário, como hoje. A democracia erodia, mas ainda havia espaço para uma reversão democrática. Além de sua ilegitimidade, o golpe martirizou Chávez, conferindo-lhe uma aura de legitimação propícia a novos avanços autocráticos.

O tempo aprofundou o autoritarismo chavista e, pari passu, conduziu María ­Corina à condição de principal liderança da oposição venezuelana. Isso levou à sua escolha como candidata presidencial na última eleição e à atuação da ditadura para a impugnar. Tal situação e seu protagonismo na campanha de Edmundo González, candidato substituto, transformou-a na personificação da oposição democrática.

Homenagem a Trump

Nesse contexto, a homenagem prestada a Trump é profundamente contraditória. O Nobel da Paz conferido a María ­Corina­ foi expressamente fundamentado na defesa da democracia como instrumento da paz. Na justificativa do prêmio, o comitê norueguês destacou a importância da resistência democrática aos retrocessos autoritários a ocorrer mundo afora. Ora, o presidente dos Estados Unidos destaca-se entre os líderes autocráticos democraticamente eleitos que mais tentam solapar a democracia, seja em suas próprias fronteiras, seja alhures.

A contradição fica ainda mais evidente quando María Corina agradece a Trump pelo que seria sua contribuição para a democracia (?!). Disse ela, em entrevista à BBC: “Pude expressar a ele nossa gratidão e o quanto o povo venezuelano está agradecido pelo que ele está fazendo, não apenas nas Américas, mas em todo o mundo, pela paz, liberdade e democracia”. A quê exatamente ela se referia? A enviar tropas federais a cidades governadas pela oposição sem seu consentimento? A demitir promotores atuantes em casos que o desagradaram? A estabelecer um glossário de termos e temas proibidos em órgãos públicos e universidades? Ou, quem sabe, a, como tem ocorrido conosco, investir contra o sistema de Justiça e a soberania de países que punem seus aliados autoritários?

O agradecimento e a homenagem a Trump contrariam o próprio sentido do Nobel da Paz que lhe foi concedido. Como ficou bem claro no comunicado do comitê, esse foi um louvor à função da oposição na democracia, que, aliás, María ­Corina­ desempenhou corajosamente na Venezuela. E, se há algo que Trump não tolera, e combate com violência, é quem lhe faz oposição. Como todo populista autoritário, tais como Hugo Chávez e ­Nicolás Maduro, Trump é inimigo do pluralismo e do direito de oposição, elementos essenciais e definidores da democracia. Há democracia quando há oposição. •

Publicado na edição n° 1384 de CartaCapital, em 22 de outubro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Prêmio para a oposição’

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

ENTENDA MAIS SOBRE: , , , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Depois de anos bicudos, voltamos a um Brasil minimamente normal. Este novo normal, contudo, segue repleto de incertezas. A ameaça bolsonarista persiste e os apetites do mercado e do Congresso continuam a pressionar o governo. Lá fora, o avanço global da extrema-direita e a brutalidade em Gaza e na Ucrânia arriscam implodir os frágeis alicerces da governança mundial.

CartaCapital não tem o apoio de bancos e fundações. Sobrevive, unicamente, da venda de anúncios e projetos e das contribuições de seus leitores. E seu apoio, leitor, é cada vez mais fundamental.

Não deixe a Carta parar. Se você valoriza o bom jornalismo, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal da revista ou contribua com o quanto puder.

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo