Justiça

Portaria 666 e a banalidade do mal

Se o mal mora mesmo nos detalhes, a portaria 666 está repleta deles

Sérgio Moro (Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)
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No dia 26 de julho, o Ministério da Justiça e Segurança Pública, representado pelo ex-juiz federal da operação Lava Jato, o ministro Sérgio Moro, publicou a portaria 666. A sua numeração soa com uma fina ironia, quase uma brincadeira, dessas que pregam peças em um fim da tarde, pois, se o mal mora mesmo nos detalhes, a portaria 666 está repleta deles.

Elaborada pelo ex-juiz que não tem qualquer apreço pela Constituição e pela justiça, a portaria 666 é aquilo que, embora trazido em um contexto anômalo ao de Hannah Arendt, poderia ser chamado de “banalidade do mal”, quando as lesões rotineiras ao direito vão acumulando nódoas indisfarçáveis, somados tantos golpes à Constituição, que já respira por aparelhos. O mal vai se tornando algo tão banal, que se torna mais difícil percebê-lo. A sua imagem fica opaca no horizonte, borrada ou obscurecida pelo convívio. Translúcido, o cenário que se esboça adiante, mesmo que áspero, vai lentamente adquirindo os contornos do comum ou rotineiro.

Em tempos de inversões em que a Constituição está em queda, é difícil resistir aos múltiplos ataques ao Estado de Direito. O mal se torna banal quando a mídia tradicional, ao invés de focalizar nos absurdos dos atos imorais e ilegais dos membros da operação Lava Jato, revelados na série em andamento vulgarmente chamada de Vaza Jato, inicialmente publicada pelo portal de jornalismo investigativo The Intercept em junho deste ano, ressalta os “benefícios” da operação, construindo a discursividade sobre o crime na focalização das invasões por hackers e não nos atos ilegais em si, que foram objeto de divulgação, respaldados inclusive na proteção constitucional à atividade jornalística.

Se o imortal escritor William Shakespeare falou que é possível ao diabo citar as Escrituras quando isso lhe convém, também pode a inconstitucional portaria 666 citar a Constituição quando lhe serve.

E ela faz isso do jeito mais banalizado possível, ao criar a figura de “pessoa perigosa”. Passada a notável abertura semântica da expressão, ela carece de legalidade formal e material, pois, além de não ser possível a uma portaria inovar, fazendo-se convenientemente de lei, ela ainda contém expressão pouco específica, dotando o juiz de superpoderes para a sua definição no caso concreto, ao dispor sobre “pessoas perigosas ou que tenham praticado ato contrário aos princípios e objetivos dispostos na Constituição Federal”, tal como contido no seu art. 2º, pode significar, assim como no desaniversário de Humpty Dumpty, aquilo que se queira que ela signifique, basta estar no poder – é claro – exatamente o caso do ministro Sérgio Moro! Isso sem contar a figura de “deportação sumária”, que viola os princípios já tão maculados da presunção da inocência e, ainda, do devido processo legal, presente ao menos desde a Magna Carta João Sem-Terra de 1215.

Assim, não se pode falar que Moro seja pré-moderno, pode-se falar que ele é justamente a figuração típica do “homem moderno”, branco, ocidental, antropocentrista, que não mede esforços para fazer com que as leis, a constituição, ou qualquer outra conquista civilizatória que afronte seus interesses simplesmente se dobrem sobre os joelhos em sua direção.

Se a portaria 666 é destinada a forjar a criminalização e consequente deportação sumária de Glenn Greenwald, norte-americano radicado no Rio de Janeiro há quatorze anos, jornalista responsável pelo portal The Intercept que tem divulgado a série “Vaza Jato”, aplicando o disposto no art. 2º, §§ 1º e 5º do mencionado instrumento, sem o devido processo legal e, ainda, escorado em investigação sigilosa, ao estilo do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), só o tempo irá dizer.

Jornalista glenn greenwald durante depoimento na CCJ do Senado. Foto: Lula Marques

O que se sabe por enquanto é que, quando se trata de atingir os seus objetivos, o diabo não tira férias. O ministro Sérgio Moro finge tirá-las, mas prepara um contra-ataque, como se fosse um jogo, exatamente como uma criança mimada que foi revelada em suas travessuras escondidas. Finge tirá-las para  “tratar de assuntos pessoais”, tal como publicado no Diário Oficial em 08/07/19, em meio às divulgações da série de reportagens da Vaza Jato, mas faz hora extra para tentar criminalizar Glenn Greenwald. Não mede o uso da máquina pública, para buscar apoio popular ao que ele tem construído discursivamente como “vazamentos ilegais”, tirando o foco da ilegalidade e imoralidade de sua conduta para focalizar na criminalização dos hackers.

Comanda a operação Spoofing, assim como comandou em outros tempos a Lava Jato, como o verdadeiro coordenador das atividades policiais. Embaralha os fatos, de forma a ampliar o tão desejado “apoio popular” (mesmo que torcido ou forjado) aos ‘vazamentos ilegais’. Atua nos processos fora de sua competência, inclusive anunciando destruição de provas, e agora publica a cínica portaria, que padece de imoralidade, ilegalidade e inconstitucionalidade, armando algum circo inesperado.

Autoritário, Sérgio Moro não mede limites para afastar seus inimigos do horizonte, extrapolando todos os limites da ética, legalidade e bom senso.

E como “bom samaritano”, continua jurando aplicar a lei – a sua, é claro. Tudo isso escorado na sua figura de homem “probo” e “isento”, aquela mesma construção semântica que, a partir da modernidade, o direito colheu para si próprio, funcionando menos como uma trava e mais como um elemento legitimador das mais diversas arbitrariedades. Provavelmente, a Constituição de Moro é aquela que lhe convém no momento, mesmo que inventada, mesmo que manipulada ou tirada da cartola como em uma passe de mágica, preferencialmente se o espetáculo se manter algo assim, banalizando o mal, tornando o absurdo trivial.

Se o Diabo veste Prada, ele pode se vestir como quiser. Às vezes, em uma ditadura disfarçada em uma portaria diabólica.

Este texto não reflete necessariamente a opinião de CartaCapital.

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