Luana Tolentino

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Mestra em Educação pela UFOP. Atuou como professora de História em escolas públicas da periferia de Belo Horizonte e da região metropolitana. É autora dos livros 'Outra educação é possível: feminismo, antirracismo e inclusão em sala de aula' (Mazza Edições) e 'Sobrevivendo ao racismo: memórias, cartas e o cotidiano da discriminação no Brasil' (Papirus 7 Mares).

Opinião

Por uma noite, Belchior me salvou do Brasil  

Numa espécie de vingança contra tudo o que aí está, tamborins, caixas, surdos, chocalhos e repiques invadiram o meu corpo

Créditos: Divulgação
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Viver no Brasil está insuportável. Sempre penso duas vezes antes de fazer esta afirmativa. Tenho trabalho. Tenho um teto seguro e, apesar de tudo, planos para o futuro.  O que deveriam ser direitos básicos, garantidos a todos, conforme determina a Constituição, hoje são verdadeiros privilégios.

Tenho também olhos extremamente atentos a tudo que se passa ao meu redor. Penso que é impossível ter uma vida tranquila, em paz, em meio a tanta miséria, violência e desrespeito. Sinto que vivemos em uma atmosfera que nos leva ao cansaço, ao abatimento, à exaustão. No noticiário, todo dia é a mesma coisa. Tudo se repete. Falas e ações cuja única finalidade é reafirmar a destruição e o desprezo pela vida humana, como política de governo, estampam as principais manchetes. Como sobreviver à inflação, aos aumentos incessantes no supermercado, na farmácia, nos postos de combustíveis?

A soma de tudo isso faz com que às vezes eu tenha a impressão de que minha vida gira em torno de encontrar estratégias para não sucumbir a este País. Há algumas semanas, fazer 10 minutos de alongamento é o meu “desjejum”. Milagres têm ocorrido no meu corpo e na minha mente. Quando penso nisso, me vem à cabeça que esse ato é antes de qualquer coisa uma forma de suportar a dureza dos dias. Na caminhada matinal de 40 minutos, esse pensamento emerge novamente. Enquanto percorro a praça arborizada do meu bairro, fujo, esqueço um pouco das nossas mazelas. Estou estudando inglês com muito afinco, não somente para aprender um novo idioma ou ter mais oportunidades na minha carreira, mas também para que a possibilidade de passar uma temporada de estudos longe daqui possa se concretizar.

Nessa luta para não “morrer de Brasil”, na noite de quinta-feira, atravessei a cidade e fui em busca de um refresco ao som da bateria do bloco Volta Belchior, que há alguns anos, durante o carnaval, faz um cortejo nas proximidades do tradicional bairro de Santa Tereza, em Belo Horizonte, entoando músicas do cantor e compositor cearense, morto em abril de 2017.

Ah, eu precisava tanto disso! Desejei com ardor um momento assim. Como se não bastasse o estado de negligência e achaque em que o País se encontra, nos dois últimos anos fomos impedidos de viver a alegria, a explosão do carnaval. Em 2021, em razão da pandemia da Covid-19. Neste ano, pela privatização descarada dos dias de folia.

Entre uma cerveja e outra, revi amigos e amigas. Abracei tanta gente. Numa espécie de vingança contra tudo o que aí está, tamborins, caixas, surdos, chocalhos e repiques invadiram o meu corpo. Foi a minha redenção. Embora durante o ensaio, o protagonismo tenha ficado por conta dos instrumentos, refleti, senti, rememorei a obra, o legado de Belchior. Mais do que nunca, “a minha alucinação é suportar o dia a dia, e o meu delírio é a experiência com coisas reais…”. Era como se em um passe de mágica, toda imoralidade, todos os abusos que nos cercam tivessem deixado de existir.

Na contramão do meme do momento, mesmo sem um cropped, reagi. Eu me senti pronta, energizada para seguir neste calvário chamado Brasil. Dentro de mim, uma frase clássica de Belchior: “Amar e mudar as coisas me interessa mais”.

Volta, Belchior!

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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