Opinião

Por uma ética da diferença

Práticas coloniais de instituições buscam perpetuar imagens de mundo que apagam a existência de grupos sociais vulnerabilizados

Policiais ocupam favela do Jacarézinho. Foto: Carl de Souza / AFP
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Estamos diante de uma crise moral em curso. A destruição do diálogo, a impossibilidade do encontro, a aniquilação pornográfica e violenta da humanidade de sujeitos significados como “os outros”, o desrespeito ao direito à liberdade de culto e de crença (sobretudo das que se afinam às tradições de resistência afrodiaspóricas) e a atualização de técnicas genocidas — por exemplo, na forma de câmaras de gás que ainda se voltam contra os corpos racializados — revelam, na verdade, que há um circuito técnico-normativo, multiarticulado e comprometido com a reverberação das ideologias de subordinação que teceram, histórica e culturalmente, a moralidade brasileira.

Somos herdeiros e herdeiras de uma dimensão moral — representativa e prática — comprometida com a perpetuação da imagem desumanizada de sujeitos reiteradamente alocados à distância da norma e de sua arquitetura restritiva. No meu livro Decolonizar valores: ética e diferença, publicado em 2021 pela editora Devires/Queerlivros, eu chamo esse circuito normativo, que banaliza a violência e impede a formação de um horizonte eticamente munido de reconhecimento, de “moral restritiva”.

Ao compreender a moral como a prática dos valores e, ao mesmo tempo, como panorama pedagógico de implementação dos costumes produzidos em nosso tempo, afirmo que ela, a moral restritiva, promove a ventilação de intenções e de ações profundamente brutais, como produto de uma técnica desenvolvida e orientada para acirrar a oposição radical entre nós, ou melhor, entre os sujeitos que se apresentam, na forma de pactos e da manutenção de privilégios simbólicos e materiais, como os únicos legítimos.

Fato é que a polarização não é fenômeno contemporâneo. Ela, na verdade, reflete a composição valorativa que se nutre da hierarquização radical entre a “norma e a exceção”, ou se preferirmos em outra configuração: entre “os heróis” e os “inimigos”.

Uma cena que revela a tradição, os bons costumes e a relação direta desses pressupostos com a produção da desigualdade, da violência e com a perseguição, normativa, institucional e moral, dos sujeitos que são designados, por essa produção restritiva de subjetividade, como menos importantes, dissidentes ou abjetos.

As prerrogativas da inimizade, nesse registro, revelam um interesse capital pela aniquilação de corpos, sentidos, afetos e composições de mundo que refutam a normatividade restritiva. Vale dizer também que a exceção e a inimizade, embora sejam grifadas pelas máquinas que se beneficiam do sangue de sujeitos suprimidos radicalmente pelo necropoder, só podem existir a partir de um sistema que constrói a norma e dissimula essa fabricação.

No Decolonizar valores: ética e diferença, eu afirmo que a construção de artefatos políticos reitera a perpetuação de valores e imagens de mundo que se alinham ao silenciamento e à destruição de sujeitos negros, LGBTQIAP+, de pessoas com deficiência, imigrantes e demais vidas precarizadas diante do “espelho colonial”.

Esse artefato se materializa quando observamos práticas institucionais orientadas para a perpetuação de silêncios e hierarquização de saberes, na banalização estética e ética que aventa as premissas eugenistas, a patologização e criminalização da diferença e, por fim, na dinâmica perversa que faz com que nós, enunciados como “os outros”, normalizemos o auto-ódio. Trata-se, nesse prisma, de uma execução que dilacera, à medida que atualiza as ideologias coloniais.

As práticas insubordinadas de uma ética decolonial desembaraçam os nós normativos que implicam na centralidade, na construção da abjeção e da vulnerabilidade. Logo, uma ética de fato comprometida com a promoção do bem comum precisa destituir as premissas coloniais que equacionam: diferença, desigualdade e letalidade. Só seremos capazes de romper com essa crise moral quando estivermos dispostos/as a quebrar, com todas as nossas forças, os “espelhos coloniais”.


TEIXEIRA, Thiago. Decolonizar valores: ética e diferença. Salvador: Editora Devires, 2021.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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