Esther Solano

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Doutora em Ciências Sociais pela Universidade Complutense de Madri e professora de Relações Internacionais da Unifesp

Opinião

Por uma democracia concreta

Como engajar na defesa democrática quem perde o sono à noite, preocupado em pagar boletos atrasados ou levar comida à mesa?

Foto: EVARISTO SA / AFP
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Dias depois de Bolsonaro ganhar as eleições, ainda na nossa profunda depressão coletiva, fiz entrevistas numa região periférica de São Paulo. Lembro até hoje, talvez vá lembrar para sempre, da frase pronunciada por um jovem negro no transcurso de uma das conversas. Era uma dessas frases que resumem a vida em alguns segundos, lapidária, a impor-se sem deixar espaço para réplicas: “Professora, agora que Bolsonaro ganhou, vocês, brancos de classe média, estão preocupados com a democracia? Nós, jovens pretos, continuamos preocupados em não morrer”. Julguem como quiserem, mas, nesse momento, a democracia, um conceito que sempre me pareceu enorme e digno, se apequenou imensamente diante desse jovem.

Agora, estamos mais uma vez lutando por democracia, para que Bolsonaro não leve a cabo nenhuma tentativa golpista, respeite as eleições de 2022 e não conduza o País a uma quebra institucional ainda maior. A maioria dos brasileiros está preocupada, porém, com o empobrecimento, com o desemprego, com a precarização, com a doença, com dramas tão presentes, tão concretos, tão objetivos. Como engajar na defesa democrática quem perde o sono à noite, preocupado com a dificuldade de pagar boletos ou levar comida à mesa? Os boletos estão perto, a democracia está longe. A fome está perto, o fascismo está longe. As crianças que devem ser atendidas estão aqui, do lado, a urna eletrônica não. É isso, a democracia precisa ter sentido para todos nós, precisa estar intimamente ligada ao cotidiano, à vida, à biografia das pessoas. A democracia precisa estar ligada ao boleto, ao prato de comida, às crianças, cujas necessidades se antepõem à defesa da urna eletrônica, precisa estar ligada à bala que atravessa o corpo periférico.

Além do sentido concreto, a democracia precisa ser urgentemente resgatada na sua definição. Escuto, com medo, em tantas entrevistas, de pessoas que se encaixam no mais protótipo estilo do fascista, mas também daquelas que não o são, que a democracia está intimamente ligada à corrupção. Então, a aventura de Bolsonaro não seria tão autoritária assim, porque, no fim das contas, “ele é honesto”. Para estes, limpar o Congresso e o STF é ótimo, nada tem a ver com golpe ou ditadura. Na verdade, é uma forma de fortalecer a democracia. O regime democrático não existe no Brasil porque os políticos são impunes, porque as leis deveriam castigar com muito mais carga punitiva os crimes de corrução etc. A corrupção, que poderia ser reinterpretada como interferência do poder econômico na órbita representativa, como o poder absoluto das elites, como a privatização da democracia, que poderia nos levar a apontar o dedo na desigualdade estrutural, é lida em termos superficiais, lavajatistas, corrosivos. A democracia, então, precisa fechar o Congresso para funcionar melhor.

É isso, meus amigos. A democracia não paga boleto, além de ser uma forma demagógica, obtusa e manipuladora de interpretar a luta contra a corrupção

É essa distorção que faz a democracia perder sentido, definhar. Como vamos conseguir, dessa forma, que Brasil se mobilize na luta democrática, na luta contra um governo que, de fato, ameaça a essência mais fundamental da uma democracia minimamente decente?

A democracia deve estar nos lares, nas mesas, no cotidiano, na vida. A democracia precisa ganhar forma, corpo, concretude, sentido, sentidos. Se mais de 50 mil brasileiros são assassinados a cada ano, também sob governos democráticos, essa tarefa não vai ser simples. Se os mais ricos têm um brutal poder e influência, também sob governos democráticos essa tarefa não vai ser simples. A democracia precisa entregar mais, muito mais, não só a mim, branca de classe média, mas a todos. Por outro lado, o campo democrático deve entender, de uma vez por todas, que precisa ressignificar o assunto da luta contra a corrupção, porque o Brasil não aguenta mais o papo de “fechar o Congresso não é golpe, é salvar a democracia”.

São tarefas gigantescas, mas que todos nós conhecemos bem. Tarefas que requerem coragem, inteligência, generosidade. Como eu gostaria que, ao reencontrar aquele jovem, pudesse dar uma resposta convincente e sincera de que a democracia, para ele, seria realmente uma via de total dignidade diante da indignidade do fascismo. É isso, meus amigos, precisamos lutar por uma democracia que tenha vida real e concreta para todos.

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1171 DE CARTACAPITAL, EM 19 DE AGOSTO DE 2021.

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