Fernando Cássio

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Professor da Faculdade de Educação da USP. Integra a Rede Escola Pública e Universidade (REPU) e o comitê diretivo da Campanha Nacional pelo Direito à Educação

Opinião

Por que propagandear a extrema-direita na Conferência Nacional de Educação?

Não há evidência de que extremistas de direita tenham conseguido eleger um grande número de delegados para a etapa nacional, mesmo em estados governados por bolsonaristas

Foto: Nina Lima/Agência O Globo
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Uma reportagem do Intercept Brasil está sendo abundantemente compartilhada nas redes sociais pelo campo progressista. O texto detalha uma possível força-tarefa do bolsonarismo para pautar a Conferência Nacional de Educação, a Conae.

Tamanho esforço de parte da esquerda em divulgar esses intentos malévolos nos convida a perguntar: qual seria o real impacto da extrema-direita na conferência que se avizinha

A etapa nacional da Conae ocorrerá em Brasília entre 28 e 30 de janeiro. Dela participarão 1.500 delegados eleitos nas etapas municipais e estaduais, provenientes de todos os segmentos atuantes na educação básica (50%), superior (30%) e profissional (20%) no país: gestores de redes de ensino e de instituições de ensino públicas e privadas, trabalhadores da educação pública e privada, conselheiros/as estaduais e municipais, estudantes e suas famílias.

Delegados/as eleitos/as para a Conae 2024. (Fonte: Regimento Geral Conae 2024, disponível no site do MEC) 

A esses 1.500 participantes com direito a voto somam-se outros 520 delegados e delegadas. Estes são provenientes tanto das entidades que compõem os fóruns estaduais, distrital e nacional de educação (delegados natos), quanto de setores atuantes na educação com representatividade nacional e estadual, incluindo ministérios da área social, parlamentares, movimentos sociais e instituições religiosas e empresariais (delegados indicados). Também está prevista a participação de outras 400 pessoas, entre observadores e pessoal de apoio e imprensa, sem direito a voto

O Fórum Nacional de Educação, desmontado por Michel Temer e ignorado por Jair Bolsonaro, foi reativado no governo Lula e é a entidade com a prerrogativa legal de organizar a Conae (Lei n. 13.005/2014, art. 6º), contando para isso com o apoio técnico e financeiro do MEC.

Composição total dos/as participantes da Conae 2024 (Fonte: Regimento Geral Conae 2024, disponível no site do MEC)

O objetivo da Conae 2024 é discutir o futuro Plano Nacional de Educação, política de Estado com duração de dez anos que estabelece as metas e estratégias para a garantia do direito à educação no país. Tal objetivo será perseguido na Conae por meio de discussões de um documento de referência produzido pelo FNE em torno de sete eixos: I) ações intersetoriais e colaboração federativa; II) acesso, permanência e conclusão nas etapas e modalidades da educação; III) direitos humanos, inclusão e diversidade; IV) gestão democrática, avaliação e qualidade da educação; V) formação e valorização dos/as profissionais da educação; VI) financiamento da educação pública; e VII) justiça social, e desenvolvimento socioambiental.

A única coisa que contribui para que os gatos pingados eleitos nas etapas estaduais se reconheçam como grupo organizado é a ampla publicização da ‘força-tarefa secreta’

A vigência do PNE atual (Lei n. 13.005/2014) termina no final de 2024, o que evidencia que o país está bastante atrasado na discussão (a tramitação do Projeto de Lei que resultou no atual PNE levou três anos) e depende da realização da Conae 2024 para qualificar o debate sobre o próximo plano decenal.

A Conferência terá 33 colóquios temáticos vinculados aos sete eixos, assim como plenárias em que as emendas ao documento referência aprovadas na etapa estadual serão votadas. Logo, não haverá espaço para que “pautas extremistas” – isto é, contrárias aos direitos humanos e redutoras do direito à educação – sejam sequer incorporadas às contribuições da sociedade civil ao PNE via Conae. Embora a matéria do Intercept seja apresentada à sociedade como furo de reportagem, a ação de grupos reacionários e fundamentalistas religiosos já vinha sendo monitorada pelo campo popular desde as etapas municipais e estaduais da Conae, uma vez que as delegações ali formadas, compondo 74,2% do pleno da etapa nacional, é que terão maior peso decisório sobre o documento final que balizará os debates do próximo PNE.

Não há evidência de que extremistas de direita tenham conseguido eleger um grande número de delegados/as para a etapa nacional, mesmo em estados governados por bolsonaristas e com forte presença de movimentos reacionários. Aliás, nenhuma de suas propostas (perseguição a professores/as, mordaças curriculares, homeschooling etc.) foi sequer apresentada como emenda ao documento que será discutido na etapa nacional da Conae. Ou seja: a única coisa que está contribuindo para que os gatos pingados eleitos nas etapas estaduais se reconheçam como grupo organizado é a ampla publicização da “força-tarefa secreta”, feita por pessoas da própria esquerda!

Na mesma matéria do Intercept Brasil que “revelou” o movimento dos grupelhos bolsonaristas em torno da Conae, a coordenadora da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, Andressa Pellanda, ponderou que, apesar de “preocupante”, a ação principal desses grupos, muito mais do que emplacar retrocessos na conferência, é “organizar uma minoria e tentar cooptar mais delegados para sua agenda”. Em uma frase: fazer bulha nas redes sociais. E, para isso, está contando com a ajuda do campo progressista para amplificar, via discurso do medo, o alcance da pauta educacional reacionária.

O grupo envolvido na “força-tarefa” não terá condições de alterar uma vírgula no documento final da Conae 2024, e nem mesmo de fazer um grande escarcéu nos microfones, já que a palavra será franqueada por três minutos em intervenções de participantes inscritos, durante as plenárias, e por 20 minutos nas apresentações nos colóquios (e não há figuras de extrema-direita nas listas de apresentadores/as). Essas regras constam do Regimento Geral que será votado na plenária de instalação, sucedida por uma abertura oficial com a presença do Presidente da República, do ministro da educação e de outros/as ministros/as, governadores/as e parlamentares, além das lideranças do FNE e das entidades que o integram.

Que alternativas sobram à temida “força-tarefa secreta” do bolsonarismo? Não mais do que convocar parlamentares extravagantes para seminários paralelos, levantar cartazes com frases ridículas e fazer barulho do lado de fora dos auditórios. Ações como as de tentar inviabilizar a conferência assediando participantes, invadindo espaços reservados ou depredando o patrimônio público do local onde será realizada – a Universidade de Brasília – deverão gerar aos/às infratores/as as consequências judiciais e penais correspondentes.

A sociedade civil reunida na Conae 2024 conta com o apoio do governo federal para garantir a profissionais da educação, estudantes e suas famílias uma segurança compatível com a das altas autoridades da República que participarão da abertura no dia 28 de janeiro. Ainda que não devamos subestimar a capacidade da extrema-direita de barbarizar, os impactos de sua “participação” são limitados pelo regimento, nos espaços da conferência, e mitigáveis por ações preventivas de segurança pública, nos seus entornos.

Seguir alimentando a bulha reacionária interessa apenas à extrema-direita, interessada em sobreviver politicamente em ano eleitoral, e aos setores (de dentro e de fora do governo) sedentos por encobrir os verdadeiros conflitos que serão travados na Conae 2024: a criação de um Sistema Nacional de Educação que não seja subordinado aos interesses empresariais; a reforma da reforma do ensino médio; as diretrizes nacionais para a formação inicial e continuada de professores/as; a melhoria de salários, carreiras e condições de trabalho de profissionais da educação; o direito à educação para a primeiríssima infância e para a população adulta; o financiamento digno da escola pública no Brasil.

Manter o alarme do reacionarismo aceso neste momento é um atalho para dissimular o conflito que realmente importa, entre a direita empresarial e o campo popular, e inviabilizar o debate substantivo das grandes linhas da política educacional no país. É isso que devemos evitar com toda a nossa energia. O caminho para fazê-lo começa por não presentear a extrema-direita com os likes e compartilhamentos escoram sua presença no debate público.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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