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Opinião

Por que o PL 4939/20 ameaça sua privacidade digital

O Brasil pode e deve avançar no combate ao crime cibernético, mas não às custas da liberdade de quem vive dentro da lei

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Por Jamil Assis, diretor de Relações Institucionais do Instituto Sivis 

Imagine que, a partir de agora, cada mensagem que você manda, cada aplicativo que você usa, cada site que você acessa, tudo isso possa ser guardado por um ano inteiro — mesmo que você não tenha feito nada errado. Imagine também que, se alguém do seu grupo de WhatsApp estiver sendo investigado, todas as suas mensagens nesse grupo poderão ser copiadas e analisadas, mesmo que você não tenha qualquer ligação com o crime. Agora imagine que tudo isso possa acontecer sem que você seja avisado, sem passar por um juiz, e que esses dados fiquem guardados para sempre, mesmo se ninguém nunca usar nada contra você.

Parece exagero? Pois é exatamente isso que pode se tornar realidade se o PL 4939/20 for aprovado como está.

Esse projeto parte de um ponto razoável: o Brasil precisa de ferramentas modernas para investigar crimes digitais. Hoje em dia, muita coisa acontece pela internet. Golpes, fraudes, aliciamentos e crimes reais usam o mundo virtual como canal. Ninguém discute a importância de permitir que a Justiça acompanhe esse ritmo. O problema está na forma como esse projeto pretende fazer isso.

A proposta atual trata todo mundo como se fosse suspeito. Ela manda que empresas de internet guardem dados de todos os usuários, o tempo todo, por precaução. Isso inclui você. Mesmo que você nunca tenha cometido um crime. Mesmo que nunca venha a cometer. Seus dados estariam ali, armazenados, esperando o caso de alguém querer usá-los. Seria como instalar câmeras em todas as casas do país, dizendo que é “só por garantia”.

E não para por aí. O projeto também permite que autoridades invadam celulares, computadores ou servidores usando “métodos ofensivos” — o texto não explica o que isso significa. Pode ser quebrar sua senha, instalar programas espiões ou acessar seus arquivos remotamente sem que você nem saiba. Isso tudo, mesmo que você esteja apenas no mesmo grupo de alguém que está sendo investigado. Mesmo que você só tenha dado bom dia no grupo da família.

Pior: ele permite que essas provas fiquem guardadas por tempo indefinido. Ou seja, mesmo que não sirvam para nada, mesmo que você seja inocente, essas informações sensíveis continuariam armazenadas em algum banco de dados do Estado. Isso não é segurança. Isso é um tipo de vigilância silenciosa, que trata a privacidade como um detalhe, e não como um direito.

Você pode pensar: “mas se eu não devo nada, não tenho o que temer”. Esse é um raciocínio perigoso. Liberdade não é só para quem está em conflito com a lei. É para todo mundo que quer viver com tranquilidade, sem medo de que suas palavras, seus pensamentos, suas conversas privadas sejam vigiadas, interpretadas fora de contexto ou usadas contra você no futuro. A liberdade de expressão, por exemplo, depende de um espaço seguro. Quando as pessoas sabem que estão sendo vigiadas, elas se calam. Quando não há privacidade, há autocensura.

Além disso, o projeto permite que empresas privadas repassem ordens judiciais entre si, como se fossem braços do Estado. Isso bagunça a responsabilidade. Quem responde se houver abuso? Quem protege o cidadão de erros ou exageros? Não se trata de impedir investigações. Trata-se de garantir que elas ocorram com responsabilidade e respeito à Constituição.

Vale lembrar que o Congresso já rejeitou várias dessas ideias em 2019, durante a aprovação da chamada Lei Anticrime. Essa tentativa de reintroduzi-las, agora disfarçadas de modernização digital, precisa ser observada com atenção. O Brasil pode e deve avançar no combate ao crime cibernético, mas não às custas da liberdade de quem vive dentro da lei.

Ninguém quer um país onde criminosos escapem porque a Justiça está de olhos vendados. Mas também não queremos um país onde todo mundo é observado o tempo todo, onde viver online é como caminhar em um corredor de espelhos. A tecnologia deve servir para proteger, não para vigiar. Deve ajudar a Justiça, sem transformar a vida digital num campo minado.

O que propomos é simples: que os termos do projeto sejam claros, que o acesso a dados seja feito com autorização judicial, que os dados de pessoas inocentes não sejam arrastados junto com os de quem está sendo investigado, e que nenhuma empresa seja obrigada a agir como polícia. Que a liberdade e a privacidade sejam tratadas como o que são — direitos de todos, e não favores do Estado.

O cidadão que respeita as leis não pode ser tratado como exceção. O Brasil precisa de leis firmes contra o crime, mas ainda mais firmes na defesa da liberdade. Porque nenhuma tecnologia, por mais avançada que seja, justifica um país onde todo mundo vive sob suspeita.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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