Opinião

Por que esse medo doentio da partilha, que só enriquece?

Como abrir portas e janelas se a casa é comum?

Por que esse medo doentio da partilha, que só enriquece?
Por que esse medo doentio da partilha, que só enriquece?
Um comerciante de joias exibe itens em ouro na Indonésia. Foto: CHAIDEER MAHYUDDIN / AFP
Apoie Siga-nos no

“As ruas do Rio de Janeiro, sem as crônicas de Lima Barreto, seriam como Troia sem Homero e Canudos sem Euclides da Cunha. Quem há de contar o drama de suas histórias?” – Luiz Antonio Simas


De fato, recontamos os lugares, com suas alegrias e dramas, mas também recontamos a nós mesmos, nosso passado, presente e até futuro. Somos tantos e mudamos a cada dia — uma virtude e quase uma sina.

Com a proximidade do Natal, as memórias dos entes queridos que já partiram se fazem mais presentes. Nestes dias, lembrei-me de uma cena com meus pais em Manágua, nos duros anos da guerra contrarrevolucionária.

Era fevereiro de 1986, e eles foram me visitar. Eu havia chegado havia apenas um mês para assumir o cargo de secretário da Embaixada do Brasil. Com 27 anos, chefiar a Chancelaria da Embaixada era um imenso desafio, em meio a uma guerra civil promovida e financiada pelo governo de ultradireita de Ronald Reagan.

Faltavam luz e água frequentemente, e a pressão psicológica de uma invasão iminente piorava tudo. As noites eram de blackout, pois não havia mais iluminação urbana. Eu estava no limite do que podia enfrentar, sendo jovem e inexperiente.

Saímos para passear pela cidade em ruínas, assim deixada após o terremoto de 1972 e a guerra civil que se seguiu ao tremor, a qual só terminaria em 1979, com o triunfo da Revolução Sandinista. O cenário desolador do passado e do presente tornava-se ainda mais angustiante com a perspectiva de uma agressão aberta dos Estados Unidos, com possíveis bombardeios aéreos e marines.

A certa altura, eu disse a eles:
— Não vou aguentar. Vou pedir remoção daqui.

Foi então que, surpreendentemente, minha mãe disse:
— Depois de tudo o que você nos falou sobre a compreensão que tem do que está acontecendo aqui, você acha que haveria outro diplomata com a mesma visão para te substituir?

O argumento de minha mãe, simples, mas profundamente conhecedor da minha psique, foi definitivo. Naquele preciso momento — cuja fotografia guardo até hoje —, ao fim de tarde, em meio a uma “não-cidade”, decidiu-se que eu ficaria e enfrentaria o que viesse pela frente, ao lado de um povo pobre, humilde e heroico.

De fato, o amor dos pais é algo que nos permite enfrentar desafios quase impossíveis de serem encarados, tal a força que nos transmitem, transcendendo até o tempo e o espaço.

Sobre as inúmeras variações desse dom divino, José Tolentino Mendonça, em A leitura infinita (Paulinas), nos dirá:

“O amor é a forma mais radical de hospitalidade.”

Precisamente porque nos acolhe em nossas fragilidades, permitindo-nos superar o medo e tirar coragem de onde o temor se instalara. Nesse sentido, é a forma mais polissêmica de interação entre pessoas, individual ou coletivamente, pois, com meus pais, aprendi que se pode amar também países e seus habitantes com tanto ardor e paixão quanto aqueles que guardamos pela pessoa amada.

Em A mística do instante (Paulinas), José Tolentino Mendonça, a propósito do final do ano e das reflexões que suscita, recorda as palavras do poeta Matsuo Bashô:

“Os meses e os dias são viajantes da eternidade. Assim como o ano que passa e o ano que vem. Para aqueles que se deixam flutuar a bordo de barcos ou envelhecem conduzindo cavalos, todos os dias são viagem e a sua casa é o espaço sem fim. Dos homens do passado, muitos morreram em plena rota. A mim mesmo, desde há anos, me perseguem pensamentos de vagabundo, mal vejo uma nuvem arrastada pelo vento.”

Em contraponto, mas como complemento, o autor cita também Marcel Proust:

“A verdadeira viagem de descoberta não consiste em buscar novas paisagens, mas em adquirir um novo olhar.”

Após ter viajado tanto, por ser diplomata, não teria como não concordar plenamente. A busca de novos olhares deveria ser como o sol que nos desperta todos os dias, inclusive para que nos estimulemos ao diálogo, uma vez que não temos o dom divino da onipresença e, portanto, não podemos prescindir da visão uns dos outros para que o mosaico da realidade se forme em toda a sua completude e complexidade.

Em outra passagem, Mendonça vai ainda mais longe:

“Nós estamos de olhos fechados e só vemos o que queremos ver. Ora, é preciso abrir os olhos para que o medo dê lugar à alegria. Nós nos sufocamos nas vidinhas que arranjamos para viver. Mas não admira vivermos infelizes. Pudera! A vida é mais.”

Como abrir portas e janelas se a casa é comum? Não é esse o erro em que incorrem aqueles que fecham suas fronteiras — e, consequentemente, as portas e janelas da percepção — ao imigrante, ao diferente, àquele que vê a vida sob outro ângulo?

De que servem tantos quadros estáticos em museus quando o panorama inigualável da vida presente é banido do olhar, quando se rejeita a alteridade e toda a riqueza que ela comporta? Por que esse medo doentio da partilha, que só enriquece?

Tolentino lembra também as sábias palavras do psicanalista Jacques Lacan:

“O amor é dar o que não se tem.”

Por fim, citando o Primeiro Testamento, recorda-nos uma das passagens mais bonitas de toda a Bíblia:

“Passou um vento impetuoso e violento, que fendia as montanhas e quebrava os rochedos, mas o Senhor não se encontrava no vento. Depois do vento, tremeu a terra. Passou o tremor de terra e ateou-se um fogo, mas nem no fogo se encontrava o Senhor. Depois do fogo, ouviu-se o murmúrio de uma brisa suave. Ao ouvi-lo, Elias cobriu o rosto com um manto, saiu e pôs-se à entrada.”

Assim, Elias encontrou Deus.

Que neste Natal busquemos Deus dessa forma: nos irmãos e irmãs, aqui e em toda a Terra, pois é lá que Ele está.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

ENTENDA MAIS SOBRE: , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Muita gente esqueceu o que escreveu, disse ou defendeu. Nós não. O compromisso de CartaCapital com os princípios do bom jornalismo permanece o mesmo.

O combate à desigualdade nos importa. A denúncia das injustiças importa. Importa uma democracia digna do nome. Importa o apego à verdade factual e a honestidade.

Estamos aqui, há 30 anos, porque nos importamos. Como nossos fiéis leitores, CartaCapital segue atenta.

Se o bom jornalismo também importa para você, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal de CartaCapital ou contribua com o quanto puder.

Quero apoiar

Leia também

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo