Liliane Mutti

Cineasta, mestre em Estudos de Gênero pela Universidade Paris 8, mestre em educação na linha de Diversidade, com orientação da psicanalista Marília Etienne Arreguy, pela Universidade Federal Fluminense com convênios estabelecidos entre a UFF e as Universidades Sorbonne IV, Paris Diderot e Sorbonne Nouvelle em Altos Estudos sobre a América Latina. Ela é a roteirista e diretora de Miúcha, a voz da Bossa Nova, filme baseado nas cartas e diários de Heloísa Maria Buarque de Holanda.

Opinião

Por que a escola diversa assusta tanto?

Parto da experiência da pesquisa-filme que deu origem ao filme ‘Miúcha, a Voz da Bossa Nova’ e nos ajuda a colocar em perspectiva a realidade de ser estudante hoje e ontem

Foto: iStock
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Durante séculos, vivemos uma educação segregada pela hierarquia de gênero. Até hoje, é possível caminhar por Paris e ver escolas com as portas identificadas como “garçon” / garotos e “filles”/ garotas, que não só tinham acesso por portas separadas, como não podiam partilhar dos mesmos horários de recreios. É fácil concluir que a grade curricular também tinha gênero, e disciplinas como bons modos eram comuns para elas e filosofia e esporte para eles. Pasmem, estamos falando da segunda metade do século XX!

Parto da experiência da pesquisa-filme sobre a cantora Heloísa Maria Buarque de Holanda, que deu origem ao filme Miúcha, a Voz da Bossa Nova e nos ajuda a colocar em perspectiva a realidade de ser estudante hoje e ontem. Miúcha estudou no Colégio Sion, no Rio de Janeiro, e, em seguida, no Colégio Des Oiseaux, em São Paulo, duas instituições particulares católicas dirigidas por freiras de origem francesa.

Nos dois colégios, Miúcha se diferenciava das suas colegas do ensino secundário, que sonhavam em casar e ter filhos, enquanto ela se via “sem amarras”, como cantora pelos palcos e rodas de música. Nas suas memórias, aparece desde muito jovem o receio de que conciliar os dois mundos, vida de artista e família, não seria algo dado para uma mulher. Ela teria que brigar por isso.

O pai de Miúcha, Sergio Buarque de Holanda, também havia passado a adolescência em um estabelecimento de ensino religioso, particular e segregado por gênero: o Colégio Dom Bosco, de São Paulo. Até 2018, o Colégio São Bento, no Rio de Janeiro, continuava interditado para alunas do sexo feminino.

Durante muito tempo, a escola serviu para reiterar os papéis sociais divididos, estereotipados e hierarquizados por gênero. A escola como um território de legitimação das distinções, reforçando as categorias de classe, gênero e raça. O sociólogo Pierre Bourdieu, que dedicou grande parte dos seus escritos a problematizar o sistema escolar francês, afirmava que a escola foi usada para reforçar privilégios, em especial do homem-branco-europeu. Em uma de suas últimas obras, A dominação masculina, Bourdieu descreve as características polares, um quadro visual de como opera a distinção na sociedade. Nele, o feminino é caracterizado pelo selvagem, mágico, dominado. Em oposição ao masculino: dominador, oficial, público. Esse quadro demonstra características forjadas, que foram historicamente embutidas ao corpo, marcando desde tempos imemoriais a divisão social do trabalho e, por consequência, o conteúdo escolar para atender a esse mercado.

No filme Dilili a Paris, o diretor Michel Ocelot introduz, com muita acidez, o tema em uma animação para crianças. O filme é conduzido por uma garota de dez anos e, à primeira vista, poderia passar despercebido como mais um divertimento. Porém, envolta nas belas fotos da Paris da Belle Époque, a obra traz um panorama do feminino e da educação no início do século XX, com uma pesquisa de personagens reais de mulheres artistas e intelectuais.

Uma fictícia organização criminosa de nome autoexplicativo “Mâles Maîtres” (Masculinistas, em uma livre tradução) sequestra meninas para impor uma educação “para garotas” nos esgotos de Paris. Entre os métodos ensinados, as meninas são obrigadas a viver na posição de quatro patas, servindo de banco para que os homens pudessem sentar ou apoiar suas mesas.

O filme é recheado de metáforas sobre a objetificação da mulher no métier artístico e as restrições à educação como punição. Entre as personagens reais, encontra-se a cientista polonesa Marie Curie, a primeira mulher a ser professora na Universidade de Sorbonne. O filme venceu o César 2019 de melhor longa-metragem de animação. No discurso de premiação, o diretor começou assim: “Viva as mulheres, viva as garotas!”. Depois de lançar o filme, o diretor Michel Ocelot produziu um material pedagógico estimulando o uso da obra como suporte audiovisual entre os estudantes e orientando os professores a atualizar o debate, porque, para o autor, o mundo entrou em uma era de retrocessos nas questões de gênero.

O mundo vive em ciclos, e é preciso estar atenta. No Brasil de 1942, foi publicado um decreto-lei que oficializou a separação por sexo dos colégios do ensino secundário, em uma clara concessão aos interesses da Igreja Católica. O decreto de autoria do ministro da Educação, Gustavo Capanema, diz no seu Art. 25: “É recomendável que a educação secundária das mulheres se faça em estabelecimentos de ensino de exclusiva frequência feminina. A orientação metodológica dos programas terá em mira a natureza da personalidade feminina e bem assim a missão da mulher dentro do lar”. (Decreto- Lei n. 4.244/42).

Esse ato foi uma tentativa de atrair o apoio da Igreja Católica para que servisse de sustentação à tumultuada Era Vargas. Depois desse decreto, que representou um retrocesso nas questões de gênero e educação no Brasil, só a partir do fim do Estado Novo os colégios passaram a ser mistos, não por obrigatoriedade, mas por nova orientação do MEC.

De todas as correntes educacionais, a católica foi a que mais resistiu à coeducação. O Colégio Sion, onde Miúcha estudou, só em 1972 deixou de ser destinado exclusivamente às meninas. A expansão das escolas mistas provocou a inclusão feminina nas escolas tidas como de excelência e com maiores investimentos públicos. Essa medida confluiu com a mudança de comportamentos dos setores médios brasileiros e a entrada das mulheres da classe média no mercado de trabalho. Como sabemos, as mulheres das classes populares sempre trabalharam e foram relegadas a subempregos.

Hoje, parece um passado distante olhar para essa cruel hierarquização de gênero pela mão do Estado através da escola. Mas ainda falta muito por fazer. Temos o desafio radical de defender uma escola aberta, diversa, pública, integral e comum. Essa escola já pode ser vista em muitas lutas cotidianas como o CIEP 449 Intercultural Brasil-França, em Niterói, que tive a feliz experiência de retratar no filme Salut, mes ami.e.s ! Que neste Dia do Estudante e das Estudantes multipliquemos os bons exemplos e contemos com o cinema para tornar essa escola possível.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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