Justiça

Por onde passaram os pés de uma mulher negra que é chefa no Brasil?

Silvia Maria estreia sua coluna ‘Só Diretoria Preta’ sobre experiências como diretora sendo uma mulher negra.

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Quando você vê o rosto de uma mulher negra indisfarçável ocupando um lugar de chefia, liderança e protagonismo no Brasil, você já se perguntou por onde ela passou? Quais as mãos que se colocaram estendidas em sua direção? O quanto de dedicação foi necessária? Quais as dores e amores que ocupam a memória deste corpo negro, que hoje você vê em um lugar de destaque?

Estas perguntas não seriam importantes se rostos negros fossem cotidianamente percebidos chefias institucionais deste país, cuja mais da metade da população é negra. Quantas mulheres negras foram suas chefas?

Meu nome é Sílvia Maria da Silva. Sou uma mulher negra, que percorreu caminhos que iniciaram na educação infantil de escolas privadas e em minha trajetória, acessei cargos no município de São Paulo, como Professora de Ensino Fundamental e Médio, Coordenadora Pedagógica, Supervisora Escolar, Supervisora Técnica e Diretora de Divisão na Secretaria Municipal de Educação. Sendo nestes dois últimos, a única mulher negra em tais posições à época.

Dos 30 anos que atuei na área da Educação, 16 foram em cargos de liderança. Sou uma professora dentre tantas Marias da Silva com a história invisibilizada neste país.  Aprender e ensinar foi o ofício que manteve a mim e aos filhos que gerei. Milton Nascimento já nos ensinou sobre mulheres como eu: Marias têm uma estranha mania de ter fé na vida. Esta fé me impulsionou e ainda hoje mantenho acesa.

Filha de Tereza da Silva, que não exerceu uma profissão para além do espaço doméstico e Fernando da Silva, que dirigia um caminhão. Ambos negros, de origem pobre, cursaram parcialmente o Ensino Fundamental. Cresci e passei a juventude em uma casa de dois cômodos e um banheiro juntamente com meus pais e mais cinco irmãos.

Aprender que sou negra foi para mim inevitável. Nas experiências que adquiri como educadora, constatei que muitas crianças vivenciam o racismo pela primeira vez na escola. No meu caso foi diferente. Cresci quando a rua era o maior espaço de interação. Bastava abrir o portão, mostrar o rosto para as demais crianças e rapidamente alguém me identificava como “neguinha” do grupo. No diminutivo mesmo.

Minha juventude foi marcada por dois momentos históricos deste pais. A silenciadora Ditadura Militar e o pujante surgimento do Movimento Negro Unificado (MNU). Eu tive a sorte de ouvir sobre as ações do MNU e ler a Biografia de Malcolm X. No mesmo período surgiram os bailes Black, assim chamados.

Silvia Maria estreia coluna sobre mulher negra diretora.

Foi este quadripé que me constituiu inicialmente. Meus pais terem para mim e meus irmãos a educação como projeto familiar, a história de Malcom X, as ações do MNU e os bailes. Este último por pouco tempo frequentei, pois percebi que os caminhos que pretendia trilhar, exigiriam um investimento humano incompatível com aqueles encontros, mas era um espaço onde os jovens negros sentiam dignidade e eu também senti.

Só depois de alguns anos é que tomei a consciência da importância das ações do MNU em minha vida. Costumo dizer que enquanto crianças negras brincam, muitos de nós estão na luta para diminuir os impactos do racismo nas vidas daqueles que ainda vão crescer.

Inicio esta coluna escrevendo sobre minha ancestralidade, infância e juventude para que saibam de onde partem meus relatos. O lugar onde crescemos e os braços que nos guiaram nesses períodos são como as raízes de uma árvore que fixarão e nutrirão nossos corpos e mentes durante toda a vida.

Acredito que todas as crianças precisam, além de receber cuidados essenciais, acessar ensinamentos sobre como as relações étnico raciais acontecem neste pais. Elas têm direito de aprender que suas vidas serão atravessadas por essas relações, sejam elas negras ou não.

Compreender que eu não era o problema e como as clivagens sociais funcionam como marcadores da diferença, foi o principal alicerce que me levou aos lugares de chefia, mas sobre tudo salvaram a minha vida quando me deparei com situações, como a de ouvir de uma diretora, que queria um prazo antes que eu assumisse a coordenação pedagógica do grupo de professores, majoritariamente branco.

Ela temia represálias e acreditava que eles precisariam ser preparados para receber a notícia de que eu seria a “chefe” por legitimidade. Ou a de ouvir de um professor não negro em uma reunião, que eu estava utilizando a Constituição como “desculpa” para defender o direito de assumir o cargo e que isso era uma “imoralidade”. Em ambas situações eu possuía o título de aprovação em concurso.

Os escritos que você lerá por aqui, apresentarão relatos da minha trajetória iniciada bem antes do racismo ser considerado crime, que culminaram com a ocupação de postos de chefia difíceis de serem alcançados pela maioria dos educadores. Em uma sociedade que nos ensina discursivamente que há uma cisão entre o pessoal e o profissional, eu me atrevo a transgredir esta dualidade.

Mulheres negras carregam em suas biografias experiências de como essas opressões estão interligadas. Portanto, quando você ver o rosto de uma mulher negra em um lugar de chefia, reflita acerca das perguntas que abrem este artigo. Escute o que ela guarda em suas memórias e a partir das respostas, podemos construir pontes para a composição de uma sociedade organizada de uma maneira mais humana.

Há de vir muitos causos por aí que não se esgotam neste artigo sobre a vida dessa Maria da Silva. Ler mulheres negras tem me curado e espero que minha escrita possa curar alguém também. Por enquanto sigo parafraseando Tim Maia: Ah! Se o mundo inteiro me pudesse ouvir. Tenho muito pra contar, dizer que aprendi

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