Opinião

Política externa de dupla via

O desafio da diplomacia está na compreensão da diversidade e da riqueza do caminho da verdade e do bem

Hanna Arendt
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A política externa está inexoravelmente vinculada à política interna. Ao defender a soberania nacional,  a política externa está próxima da visão estratégica de país, contribuindo, equilibrando e, eventualmente, avançando com relação à política interna. Um exemplo disso é a diplomacia conduzida por José Maria da Silva Paranhos Júnior, o Barão do Rio Branco (1845-1912).

Conquanto fosse Chanceler durante a República Velha (1889-1930), o Barão dirimiu todos os nossos conflitos de demarcação de fronteiras por meios pacíficos, em espaço de tempo exíguo, de aproximadamente 25 anos. Trata-se de feito heróico, inaudito, que custou a saúde e a vida de Paranhos: algo como defender 10 teses de doutorado, em seguida, sem dispor de computador ou Google.

Dessa forma, o Barão suprimiu a principal fragilidade de toda e qualquer política externa: os conflitos fronteiriços, negociando com 10 vizinhos e até com potências extrarregionais, como no caso das Guianas Inglesa (então colônia) e Francesa, além do Acre, que fora “cedido” pela Bolívia a uma empresa de capital estrangeiro do Norte e de nome fantasia enganoso – “Syndicate”. Demais, no caso do Acre – mas não apenas, o Barão utilizou o conceito revolucionário do “uti possidetis”, que pode ser traduzido do latim como: a posse se justifica pela utilização. A “terra para quem precisa”, defendida pelos movimentos sociais no campo.

As gerações passadas reconheceram o sacrifício do Barão, como se pode verificar ainda hoje pelos logradouros que trazem o nome dele, a começar pela principal avenida da então capital federal – o Rio de Janeiro, cuja Avenida Central foi rebatizada “Rio Branco”, assim como a capital do Acre e a cidade uruguaia que faz fronteira com Jaguarão.

Tudo isso com o pano de fundo da “política do café com leite”! De fato, já em seu leito de morte e após ter tentado entregar o pedido de demissão ao presidente Hermes da Fonseca – que o rejeitou, sob o pretexto de que seria a República ruiria -, Rio Branco, em delírio febril, foi assombrado pela violência fratricida dos bombardeios das fortalezas de Salvador da Bahia.

O longemirar do Barão também pode ser atestado por sua última defesa de limites: a da Lagoa Mirim. O Uruguai, país lindeiro, sequer reivindicava a margem ocidental da Lagoa, pois aceitava os termos do Tratado de 1851, que a conferia integralmente ao Brasil. A República Oriental apenas reivindicava acesso aos rios de águas contíguas, como o Jaguarão. Entretanto, em gesto magnânimo, o Barão reconheceu que aquelas águas eram fronteiriças, concedendo ao Uruguai o justo domínio de toda a margem ocidental da Lagoa e das águas correspondestes à nova fronteira. Para isso, utilizou o argumento ético de que aquele curso de águas tinha maior importância para o Uruguai do que para o Brasil.

De fato, essa visão de longo prazo encontrou confirmação: a pequena – em extensão – República Oriental tem muito a nos ensinar atualmente, seja no trato com as drogas leves; seja no tema do casamento homoafetivo; seja na diplomacia ousada, a qual, juntamente com a Chancelaria mexicana – o Tlatelolco, está propondo uma saída pacífica, negociada e sem ingerências externas para a crise venezuelana.

Com efeito, um dos grandes desafios que se colocam para a política externa é o de contribuir para internalizar as relevantes decisões e práticas internacionais, tanto multilaterais quanto bilaterais. Diariamente, o sistema das Nações Unidas e os países individualmente produzem grande quantidade de diretrizes voluntárias e de políticas públicas, que merecem ser conhecidas e, eventualmente, adotadas em âmbito nacional.

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No Brasil, porém, ainda não atingimos esse grau de cultura – embora paulofreiriana, que se reflete na ausência em nossa institucionalidade de mecanismos dialógicos que recebam e difundam as melhores práticas, nos mais variados setores da vida pública.

Por antonomásia, cabe lembrar ao menos dois dos exemplos históricos mais trágicos: o do fascismo e do nazismo.

Mussolini nomeou o genro Gian Galeazzo Ciano para ser Ministro das Relações Exteriores, o qual, como aviador, participara do bombardeio e invasão da Etiópia, em 1936. Naquele mesmo ano, foi nomeado chanceler pelo sogro e, nessa qualidade, negociou a criação do Eixo Itália-Alemanha-Japão, que levaria à Segunda Guerra Mundial. Pior, defendeu também a intervenção italiana na Guerra Civil Espanhola, cujos covardes bombardeios do País Basco, pela aviação fascista, seriam imortalizados na tela “Guernica”, de Pablo Picasso.
Hitler, por sua vez, indicou Joachim Von Ribbentrop, ex-vendedor de espumantes, para o cargo de Ministro das Relações Exteriores.

No livro “Eichmann e o holocausto”, a filósofa política Hanna Arendt (na foto acima), refere-se à conferência de Wannsee (subúrbio de Berlim, janeiro de 1942), em que o governo alemão oficialmente adotou como política de estado o extermínio dos judeus. A provar a banalidade do mal, observa sobre aquela trágica conferência: “Os cavalheiros do Ministério de Assuntos Exteriores compareceram com um complicado memorando, elaborado por eles mesmos, em que expressavam “os desejos e ideias do Ministério de Assuntos Exteriores, com respeito à total solução do problema judeu na Europa”, memorando ao qual ninguém prestou a menor atenção.”

Como sempre, há escolhas à nossa frente, que, na construção de uma nação, devem ser as do diálogo nacional e internacional; da escuta; da reflexão; da proposição e da criação conjunta, com base na herança das lições do passado, pois somos um mosaico, em que cada cultura tem sua função, papel e missão. O desafio está na compreensão da diversidade e da riqueza do caminho da verdade e do bem.

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