Opinião

Poder público deve requisitar equipamentos e insumos para reforçar o SUS

A pandemia de coronavírus no Brasil, sob vários aspectos, mas sobretudo do ponto de vista do sistema de saúde, reflete nossa desigualdade

SUS (Foto: Antonio Cruz/ABR)
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No plano jurídico, a existência de uma pandemia inscreve-se como uma situação de emergência ou calamidade pública de caráter extraordinário, para a qual a ordem jurídica pode e deve oferecer respostas. O constitucionalismo democrático prevê que, em situações de emergência como a atual, o Estado tenha seus poderes ampliados, podendo, inclusive, suspender parcialmente direitos para atender às exigências do momento de crise.

Para atender à emergência sanitária que se impõe com a pandemia, o Estado pode avocar poderes de suspensão de direitos e de obstáculos procedimentais, no plano institucional, como a abertura de licitações para a compra de equipamentos médicos.

Isso não representa medida de exceção clássica, ou seja, uma ação arbitrária de persecução de inimigos, de suspensão de direitos por motivos políticos e de disputa de poder. A exceção, como se sabe, caracteriza-se pela anomia, pela falta de norma, pela ausência de legalidade. Trata-se de uma legalidade extraordinária ou um regime jurídico especial, que se estabelece para reger uma situação excepcional.

É importante observar, entretanto, que poderes excepcionais são vinculados ao estritamente necessário à solução da emergência. Se o governante os extrapolar, cometerá um delito. Mas, se deixar de exercer esses poderes, omitindo-se, também comete ilícito que, a depender da situação, pode até ser caracterizado como crime de responsabilidade ou de lesa-humanidade.

A pandemia no Brasil, sob vários aspectos, mas sobretudo do ponto de vista do sistema de saúde, reflete nossa profunda desigualdade social. Como tem sido estimado pelos especialistas, entre 10% e 20% dos pacientes infectados pelo novo coronavírus precisam ser internados em um leito de UTI. De acordo com a Associação de Medicina Intensivista Brasileira, o índice de leitos no País é próximo de 2 para cada 10 mil habitantes, dentro da recomendação da OMS. A distribuição desigual entre as redes pública e privada e entre os diferentes estados torna, no entanto, a situação preocupante. Segundo dados da entidade, apenas 44% dos leitos de unidades de terapia intensiva do Brasil estão no SUS, responsável pela assistência de três quartos da população. Somente 25% da população tem convênio médico e, portanto, acesso à rede privada.

Diante desse cenário, a legalidade extraordinária é, sem dúvida, um dos remédios mais poderosos para conter o avanço da doença. Ela confere ao poder público a oportunidade de requisitar instalações, equipamentos e profissionais da iniciativa privada para resolver ou minorar os problemas decorrentes da pandemia, podendo indenizar seu uso quando cessar a situação de emergência. Na realidade, não se trata de uma prerrogativa facultativa do poder público fazer ou não uso desse poder de requisição administrativa, mas de seu dever. Países como Itália, Espanha e Irlanda fizeram uma “estatização provisória” dos seus recursos de saúde e mesmo de atividades industriais de produção de medicação e equipamentos necessários à prestação de serviços de saúde na pandemia. Deveríamos nos preparar para esse tipo de medida e surpreende que não haja por parte dos estados, municípios e da União um planejamento nessa direção.

Vale ressaltar que a requisição administrativa está prevista no inciso XXV do artigo 5o da Constituição, em leis federais e também nos decretos de calamidade pública federal, estaduais e municipais recentemente aprovados. Logo, tem ampla previsão não só na Constituição como também na legislação infraconstitucional.

Além de fazer valer o princípio da igualdade na manutenção da saúde e das vidas da população, há outra dimensão da legalidade extraordinária que precisa ser destacada e que diz respeito à conduta do governo federal, em especial do presidente da República. Ainda que o ministro e o corpo técnico do Ministério da Saúde atuem de forma relativamente eficiente na condução da pandemia, nota-se nas atitudes de Bolsonaro um quase boicote às medidas sanitárias instituídas, entre elas, a mais essencial, o isolamento social.

Quando um presidente da República assume posturas contrárias ao que deter- mina o próprio ministro da Saúde, ele se omite em um dever que deveria cumprir. Ao propor o chamado isolamento vertical como forma de manter a atividade econômica, Bolsonaro age de forma irresponsável, fronteiriça com o cometimento de um crime grave. O mau exemplo talvez seja o caso mais grave que se tem de ilicitude cometida nesta pandemia e que, se não for corrigido, deve sofrer responsabilização, não só no plano político-administrativo, mas também caracterizado como crime de responsabilidade, ou até mesmo crime contra a humanidade e outros delitos pre- vistos no nosso direito penal comum.


* Colaboraram Juliana Serrano e Tayna Ared

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