Roberto Amaral

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Cientista político, ex-ministro da Ciência e Tecnologia e ex-presidente do PSB. Autor de História do presente- conciliação, desigualdade e desafios (Editora Expressão Popular e Books Kindle)

Opinião

Podendo falar ao mundo, Bolsonaro dirigiu-se ao seu gueto ideológico

Seu discurso agressivo e belicoso serviu apenas para aumentar o isolamento do Brasil no convívio internacional

Jair Bolsonaro discursa na Assembleia Geral da ONU, em Nova York. Foto: Alan Santos/PR
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O capitão não surpreendeu. Na Presidência continua sendo aquele deputado do baixo clero, nunca contido, que se fez notório pela defesa de abjeções como a ditadura e ditadores, a tortura e torturadores. Uma carreira política centrada, em síntese, na apologia ao crime. Na tribuna da ONU não foi diferente: podendo e devendo falar ao mundo, dirigiu-se ao seu gueto ideológico, doméstico e provinciano, repetindo a toada da campanha eleitoral, da qual não se aparta. No oitavo mês de um governo que coleciona fracassos, se comporta como candidato à reeleição e faz da tribuna da ONU palanque eleitoral.

Não titubeou em mentir e distorcer os fatos. Seu texto expressa absoluto, talvez até doentio, descompromisso com a realidade.

Mentiu quando se apresentou como líder de ações anticorrupção. Mentiu quando acusou os médicos cubanos, ora de não terem formação profissional, ora de serem espiões de seu governo. Mentiu ao se autoproclamar negociador bem-sucedido de acordo de livre comércio com a UE, quando chegou ao final de negociações que se desenrolaram durante mais de 20 anos. Mentiu e distorceu números quando se referiu à questão indígena e às reservas dos ianomâmi, e foi despropositadamente grosseiro com o cacique Raoni, que tentou reduzir ao papel de “peça de manobra” nas mãos de potências estrangeiras com interesses na Amazônia.

Mentiu quando atribuiu à cultura de nossos índios as queimadas que ameaçam a Amazônia. Mentiu quando se disse representar a população brasileira querendo significar que seu discurso – que nos descreve como um País ultraconservador e de extrema direita, de repente evangélico/pentecostal – expressava o pensamento nacional.

Mentindo sempre, o capitão afirmou que o Brasil usa apenas 8% de suas terras na produção de alimentos. Como observa Carlos Rittl, secretário-executivo do Observatório do Clima (O Globo, 25/09/2019), nada menos de 33% do nosso território são destinados à agricultura e à pecuária. Também mentiu ao afirmar que a Amazônia está praticamente intacta, quando já perdemos 20% da floresta original.

Ele próprio um anacronismo político, insistiu no anacronismo da Guerra Fria, morta e sepultada há décadas, para apresentar-se como herói de uma guerra que não houve no Brasil, contra o socialismo – de que, aliás, jamais nos aproximamos, lamentavelmente.

O discurso do presidente é velho, mofado, na temática e na forma. E falso de cabo a rabo. Na tribuna da ONU, num plenário que na medida em que o conhece mais deve ter saudade de seus antecessores, falou pequeno, preso à domesticidade provinciana, e mais uma vez contribuiu para desgastar a imagem do Brasil, construída num esforço de muitos anos, muitos governos e muitos presidentes, particularmente na defesa da paz e do primado da sustentabilidade, que nos fez pousar entre as nações líderes da política mundial de proteção ambiental.

Seu discurso agressivo e belicoso serviu apenas para aumentar o isolamento do Brasil no convívio internacional, pondo em risco, inclusive, nossos interesses econômicos e nos afastando ainda mais da sociedade das nações, ao voltar a tratar de forma irresponsável as questões ambientais. Quando devia falar à comunidade internacional sobre as garantias que podemos oferecer de que a floresta amazônica será preservada, repetiu bordões e se limitou ao esperado discurso soberanista, que deve ter eco junto à cúpula militar, mas todos sabem que é um discurso vazio. Posta de lado a declaração idiota do presidente Macron, nossa soberania sobre a Amazônia não está sob questão. O que o governo que aí está não enfrenta é o fato singelo de que a soberania transformar-se-á em mera retórica ao não implicar a proteção da Amazônia, cuja ocupação não pode ser feita no rasto do boi ou dos garimpeiros, mas mediante aproveitamento científico-tecnológico de sua rica biodiversidade, em prol da coletividade.

O discurso da ameaça externa, o fantasma das garras das grandes nações ameaçando a soberania brasileira sobre a Amazônia, porém, é muito conveniente ao capitão, pois a invenção do inimigo externo sempre facilita a composição interna, e esta postura é o instrumento que explora para tentar reorganizar sua base de apoio, começando pelos militares. Neste ponto ele deveria ser grato ao presidente francês, pois lhe dá a oportunidade de fugir ao debate sobre a crescente desaprovação popular de seu governo. Segundo a última pesquisa CNI/IBOPE, 50% das pessoas consultadas disseram não concordar com a maneira do capitão governar, e 55% afirmaram não confiar no governo. A classificação de governo ruim/péssimo saltou de 27% em abril para 34% em setembro.

A floresta está realmente ameaçada, mas pela exploração predatória, como o agronegócio primitivo e a extração mineral que estimula o garimpo devastado e terras e rios. A floresta está ameaçada pelas queimadas, no fundo incitadas pelo desaparelhamento do ICMBio e pelo discurso anti-protecionista do capitão.

A grande ameaça que paira sobre a floresta é, em síntese, o governo Bolsonaro. Na ONU, não podendo apresentar um plano de efetiva defesa ambiental da Amazônia, tentou tampar o sol com a peneira: simplesmente negou os problemas, quando a questão ambiental passa a constituir tema de primeira ordem para as nações, condicionando, inclusive suas políticas e seu comércio, o que, amanhã, poderá reverter-se em prejuízo para nossas exportações. O discurso do capitão fortalece a política de muitas nações que advogam contra nós punições econômicas.

O capitão não reconhece problemas: tudo o que gira em seu entorno é criação de esquerdistas, é fruto de um comunismo ou de um socialismo de indústria, invocado artificialmente para unificar suas tropas.

Quando a tradição do Brasil, na ONU, na abertura das Assembleias Gerais, era, até aqui, falar nas questões mais candentes do cenário mundial apontando para o entendimento, o multilateralismo e a solução pacífica dos conflitos, o fortalecimento dos organismos internacionais, o capitão, num discurso antagonista, investe contra a própria ONU, mas nem assim foi original. Mesmo contra o multilateralismo chega atrasado na disputa de uma liderança que já está de há muito ocupada por seu guia e ícone, o presidente Trump. Chega atrasado e nada acrescenta diante do espanto da comunidade internacional. Isolando-se – num mundo que já se viu livre de Matteo Salvini e se está despedindo de Macri e Netanyahu, seus grandes aliados ao lado do presidente dos EUA, este já respondendo a processo de impeachment – cava o aprofundamento de nosso isolacionismo, transformando em passado longínquo aquele Brasil que Lula fez o mundo admirar. A política externa ativa e altiva se reduz a isso: a subalternidade aos EUA de Donald Trump e a submissão ideológica à nova direita que se diz soberanista, apontando internamente para um macarthismo insólito, protofascista.

As citações críticas à Alemanha e à França (país que está construindo nossos submarinos convencionais e vai construir os submarinos de propulsão nuclear) são, apenas, mais um desatino.

Autocrata livre de controle, seu discurso é avesso ao diálogo, às composições, ao entendimento, à tolerância. É, porém, pleno de reservas à liberdade de imprensa. É uma antidemocrática sequência de dictaks, como seu governo. Por isso o discurso que lhe foi dado ler é sincero, é Bolsonaro por ele mesmo.

Um grito que não pode calar: Quando saberemos quem mandou matar Marielle Franco?

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