Yasmin Morais

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Escritora, jornalista em formação pela Universidade Federal da Bahia com mobilidade acadêmica na Université Toulouse 2 Jean Jaurès, integrante do Centro de Estudo e Pesquisa em Análise do Discurso e Mídia (CEPAD) da UFBA e fundadora do projeto Vulva Negra.

Opinião

Pode a mulher negra falar?

O que os recentes ataques a Djamila Ribeiro nos dizem sobre o ódio generalizado à autonomia intelectual das mulheres

Foto: Max Felipe
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Quando Pandora recebeu a caixa em suas mãos, não suspeitava do que estava por vir. Entregue como presente pelos deuses olimpianos ao mortal Epimeteu, a primeira mulher humana, segundo a Mitologia Grega, precisava apenas controlar a sua curiosidade e medir as suas palavras, não realizando questionamentos supostamente equivocados e, sobretudo, não abrindo a caixa que lhe fora confiada por Zeus. O acato a essa ordem seria a máxima comprovação de seu respeito, devoção e fidelidade.

Durante anos, a jovem Pandora cumpriu com o pacto que sobre si havia sido lançado, tendo vivido em grande felicidade com o seu marido Epimeteu. Contudo, a curiosidade, presente que lhe fora dado pela deusa Hera, não lhe permitia manter-se bem comportada, seguindo as expectativas daqueles que a haviam projetado para ser uma boa garota, “pouco curiosa” e muito “condescendente”.

Pandora se sentia atormentada com a ausência de autonomia no diminuto espaço que outros haviam construído para si e em um rompante de coragem luminosa, escreveu o artigo de opinião Nós Mulheres não Somos apenas Pessoas que Menstruam para a Folha de São Paulo. Pandora abriu a caixa. E, claro, haveria consequências. Afinal, todas as mulheres, minha cara Pandora, são expulsas de algum Paraíso quando abrem a tão temida caixa.

Djamila Ribeiro, diferente de Pandora, sempre foi uma mulher autônoma e visionária. Mas ambas possuem algo em comum, algo que partilham com tantas outras mulheres feministas: a caixa que não pode ser aberta, as perguntas que não podem ser feitas e as ordens que não podem ser questionadas.

Quando Rose, feminista de segunda onda, iniciou a produção coletiva As Regras da Misoginia, talvez não intencionalmente tenha descrito o lugar da boa Pandora para o qual todas as feministas, negras, indígenas e brancas, são empurradas pela supremacia masculina, “homens são o que quer que homens queiram ser. Mulheres são o que quer que os homens digam que elas são”. O espaço social construído por mulheres negras dentro da sociedade através dos movimentos auto-organizados e do ambiente teórico e prático do feminismo negro, mantém-se minimamente aceitável, até que de fato incomode e proponha questões caras às quais muitos ainda não estão aptos a responder.

O cenário já se construiu dessa forma para teóricas como Angela Davis, bell hooks, Sueli Carneiro e Audre Lorde, assim como também para outras feministas que desafiavam a supremacia masculina em sua gênese e no seu mais benquisto espaço de poder: a intelectualidade e o pensamento. Se voltarmos novamente às regras da misoginia, saberemos que qualquer negativa dada por uma mulher a um homem é um crime de ódio. Contudo, me permito estender o conceito para outros ramos das relações entre a classe feminina e as demais classes.

A negativa das mulheres em se submeterem, a ânsia por construírem seus próprios pensamentos e se permitirem o questionamento ao invés da assimilação cega, é um crime de ódio. Não apenas contra os homens, mas contra todos aqueles que se beneficiam do silêncio das mulheres e preferem-nas caladas, se não estão apenas a falar aquilo que eles desejam ouvir. Engana-se quem pensa que os ataques direcionados à figura de Djamila Ribeiro são uma mera consequência da dita cultura do cancelamento.

Porque, na verdade, o homicídio social é uma estratégia de silenciamento utilizada contra mulheres há milênios, tendo a sua adaptação a partir do feminicídio real, que remonta a época em que mulheres dissidentes se tornavam mártires após serem executadas. O ódio que muitos direcionam agora à Djamila, por ter aberto a caixa, é direcionado há décadas às mulheres que mesmo em seu anonimato, fazem, em uníssono, as mesmas perguntas.

De fato, é desafiador para nós como classe perceber que as questões que verdadeiramente movimentam a consciência e nos põem em espaços de ação, estão interditas. Nos desafia perceber que somos acolhidas, tanto nos espectros da direita (para as conservadoras) como da esquerda (para mulheres feministas), apenas quando cedemos mais do que recebemos e de fato, não estamos a incomodar. E como dizia Simone de Beauvoir, a situação torna-se ainda mais complexa, porque temos cúmplices entre as oprimidas e as mulheres, como bem descrito na obra Amar para Sobreviver: Mulheres e a Síndrome de Estocolmo Social de Dee L. R.Graham, por vezes aceitam fazer o “trabalho sujo” do Patriarcado sem que sequer percebam, e perseguem outras mulheres a fim de defender perspectivas que nos atingem a todas como classe.

Mulheres que se posicionam em prol de si e das demais, ativistas que consideram os direitos femininos inalienáveis e inegociáveis, são as Pandoras da nossa geração. Mulheres que se autodefinem são perigosas. Aquelas que ousam abrir a caixa e enfrentar o ódio e a cólera, mas que nesse frenesi, libertam também a esperança.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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