Gustavo Freire Barbosa

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Advogado, mestre em direito constitucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Coautor de “Por que ler Marx hoje? Reflexões sobre trabalho e revolução”.

Opinião

Pessoas passando fome é prova do capitalismo funcionando

Faltam consumidores, sobram seres humanos famintos

Fotos: Elineudo Meira/ @fotografia.75
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No último dia 06 a Folha de S. Paulo publicou reportagem com a seguinte chamada: “Mercado tem carne para o fim de ano, mas falta o consumidor, diz consultoria”. Segundo os analistas consultados, embora haja oferta, a demanda está comprometida em razão do baixo poder de compra da população. É bom lembrar que sete em cada dez pessoas que receberam o auxílio emergencial o tinham com única renda, segundo o Datafolha. Embora chocante, tal dado mostra apenas uma parte da situação dramática pela qual vem passando a população brasileira.

A ideologia – ou a moral tolerante com o fato de existirem pessoas passando fome – se revela na linguagem. Falta consumidor, não seres humanos famintos. É esta a conclusão que se tira de matéria da mesma Folha de S. Paulo publicada um dia depois: “Famílias comem lagartos e restos de carne para enganar fome no RN”.

A fome é reflexo de uma evidente contradição do capitalismo – contradição, não disfuncionalidade, já que os trilhões acrescidos às fortunas de bilionários durante a pandemia são provas de seu pleno funcionamento, principalmente se considerarmos o aumento da pobreza nesse período. Assim como as vacinas, há comida abundante e escassez artificial. As forças produtivas, com todo o potencial de gerarem melhores condições de vida às pessoas, seja vacinando-as ou alimentando-as, prendem-se ao propósito que lhes destina a produção capitalista: a acumulação.

Se essa contradição existe, o mesmo não ocorre na diferenciação entre “pessoas” e “consumidores”, uma vez que, no modo de produção capitalista, os alimentos assumem a forma histórica que lhe é correspondente, qual seja, a forma-mercadoria. Nela, as carências das pessoas não são mediadas por suas necessidades, de maneira que, para que sejam supridas, é necessário que ocorra a mediação pela compra e venda, atos voluntários situados na esfera da circulação mas cujo pecado original reside nas condições de produção, fincadas na propriedade privada e na exploração da força de trabalho.

Alimentos, portanto, não são feitos para quem tem fome, mas para quem tem inserção na esfera de consumo ou de circulação de mercadorias. Se você, embora seja titular do direito humano à alimentação adequada, não tiver condições de ser consumidor, as possibilidades de que seus desejos, carências e necessidades sejam supridos são consideravelmente reduzidas. E isso não é um problema somente moral, mas sobretudo estrutural. E quando a estrutura é capitalista, alçar a necessidade em primeiro plano implica em tapar a aorta que irriga a acumulação.

Por isso, na lógica do capital, há coerência em traçar a diferença entre consumidor e gente. Se há carne estocada esperando a China abrir suas portas, é porque sua disponibilização para o miserável que está comendo calango afeta os lucros do agronegócio. Da terra enquanto mercadoria, projetada na expansão da fronteira agrícola sobre as terras de povos originários, desmatando, envenenando rios e violentando comunidades indígenas e quilombolas, nasce a comida enquanto commoditie, voltada à exportação.

Há poucos anos havíamos saído do mapa da fome. O golpe de 2016, contudo, nos chutou de volta para a cartografia da miséria. Hoje mais da metade da população brasileira está submetida a algum grau de insegurança alimentar. No mundo, são mais de 800 milhões que passam fome, segundo as Nações Unidas. Graças à China socialista, responsável por 70% da redução da pobreza nos últimos anos, o planeta não está em situação pior.

“Estamos mantendo mais da metade da população mundial na pobreza, em condições humilhantes, embora o que produzimos em todo o mundo seja equivalente a 20 mil reais em bens e serviços por mês por família de quatro pessoas”, observa o professor Ladislau Dowbor, que prossegue: “no Brasil temos 20 milhões de pessoas passando fome, num país que produz o equivalente a 3,2 quilos de grãos por dia por pessoa. Para os traders que negociam os grãos, é mais rentável o mercado externo. É preciso ser mais claro?”.

As chances de resolver esse problema em definitivo estão na superação da forma-mercadoria – ou, em outras palavras, do próprio capitalismo. Fora disso, é permanecer vivendo da caridade de quem nos detesta, diria Cazuza.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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