Eliana Sousa Silva

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É diretora da ONG Redes da Maré, do Rio de Janeiro, pesquisadora em segurança pública e professora visitante do Instituto de Estudos Avançados da USP.

Opinião

Pessoas não são alvos: a dor que ecoa das favelas e periferias do Brasil

Dependendo de onde se reside, há uma definição das possibilidades de acessar serviços, ter mobilidade, ser criminalizado. De existir

Falta de direitos humanos assombra as favelas do Brasil (Foto: Douglas Lopes/Redes de Desenvolvimento da Maré)
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No centro dos últimos e muitos fatos que têm acorrido no Rio de Janeiro, envolvendo os enfrentamentos entre agentes da segurança pública e integrantes de grupos armados, está a população das favelas. De forma perversa, assistimos a uma lógica clássica por parte do Estado, que não reconhece direitos iguais ao conjunto dos moradores de uma mesma cidade. Dependendo do local onde se resida, há uma definição, de antemão, das possibilidades de acessar serviços, de ter mobilidade, de ser criminalizado. De poder existir, enfim.

Esse processo de formação do nosso país, estruturado em bases preconceituosas e racistas, alicerça e ancora a desigualdade que, de maneira profunda, está nas entranhas da nossa forma de existir como povo. É olhando desse prisma que identificamos, historicamente, nas favelas e periferias, o lugar onde, de modo mais concreto, as pessoas são atingidas pelas violências produzidas a partir de uma lógica racista e classista.

É nessa perspectiva que é importante compreender o fato de alguns direitos não terem chegado ainda hoje, século 21, às populações de favelas e periferias, como é o caso da segurança pública. Esse direito – que, de forma tardia, foi reconhecido como um direito humano – está longe de contemplar todos os cidadãos brasileiros.

Nesse sentido, a definição do que são os direitos humanos pela Organização das Nações Unidas (“as garantias de proteção das pessoas contra ações ou falta delas pelos governos, que possam colocar em risco a dignidade humana”) ilustra bem o momento que vivemos no Rio de Janeiro, quando se trata da violação pelo Estado dos direitos das populações de favelas e periferias.

Formulei, a partir da minha pesquisa de doutorado em 2009, uma reflexão sobre as demandas que chamei de primeira geração e que tiveram como norte a busca por acesso a serviços materiais básicos: rede de água potável, esgotamento sanitário, energia elétrica, habitação, equipamentos de educação e saúde, dentre outros. Na década 80, esses diretos orientavam, em grande medida, a agenda de ação e reivindicação dos movimentos comunitários de favelas, por meio das associações de moradores e de outras formas de organização de base.

As demandas de segunda geração, por sua vez, podem ser definidas como o acesso a serviços mais sofisticados, abrangentes e de melhor qualidade em campos como educação, cultura e bem-estar. Nesse caso, trata-se de ampliar o leque de possibilidades, melhorando a qualidade dos serviços e equipamentos públicos, incentivando o acesso ao ensino superior, ofertando cursos técnicos, de línguas estrangeiras e informática, permitindo aos moradores de favelas encontrar empregos de maior qualidade, entre outros direitos similares.

Temos, ainda, as demandas de terceira geração, que tratam de aspectos relacionados às subjetividades e identidades dos indivíduos, tais como: o direito à diferença em todas as suas dimensões e o direito à dignidade, em todos os níveis. Nesse caso, questões vinculadas ao gênero, à etnia, à sexualidade, à segurança, a um meio ambiente saudável – aos direitos humanos, lato sensu, enfim – definem a agenda em que precisamos avançar no processo de lutas das populações de favelas e periferias. Sem esquecer que são justamente muitos desses direitos que tem sido questionados pela agenda conservadora que se impõe no País.

Encontramo-nos, portanto, neste ponto que é notório: muitos foram os avanços ocorridos a partir das lutas históricas dos movimentos comunitários nas favelas, com a força vigorosa que sempre caracterizou essas áreas. Entretanto, ainda são muitas e necessárias as diferentes experiências que surgem na tentativa de enfrentar os desafios e a complexidade de se pensar as favelas como cidade, como espaços em que todos e todas deveriam ter seus direitos assegurados, tal como ocorre em qualquer outra região urbana.

Os fatos ocorridos em algumas favelas do Rio de Janeiro entre os dias 16 e 20 de setembro de 2019, a partir da entrada de agentes da segurança pública nesses espaços, provocando medo e terror aos moradores, vitimando crianças – como o caso da menina Agatha Félix, de apenas oito anos, moradora do Morro do Alemão – e jovens (cinco foram assassinados no mesmo dia e local), diz muito sobre as políticas públicas que temos, no momento, implementadas pelos gestores que ocupam os espaços de comando.

Nessa medida não seria necessário refletir – mas prioritariamente agir – sobre as práticas cotidianas presentes nas favelas, em especial as violentas, permitindo-nos ir além das representações predominantes no senso comum carioca e brasileiro sobre a violência? Quais são os valores, princípios e regras que orientam as práticas dos profissionais da segurança pública, quando se trata do trabalho junto às populações mais pobres?

As experiências e representações dominantes nas organizações do Estado, na mídia, na população em geral, incluindo grande parte dos residentes de favelas, são centradas na ideia de que a única possibilidade de enfrentamento dos grupos criminosos passa, necessariamente, por uma opção sustentada em práticas também violentas, que tornam os moradores de favelas o maior alvo. Sem dúvida, esta é uma das maiores tragédias urbanas de que temos notícia. É desse ponto que precisamos agir. Imediatamente.

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