

Opinião
Perigosas interpretações
Houve quem tentasse deslegitimar a Carta lida em 11 de agosto, atribuindo à manifestação intenções de teor ideológico esquerdista. Mas não é difícil desmontar esse argumento desonesto


Quinta-feira, 11 de agosto de 2022. O local escolhido: as dependências da Faculdade de Direito da USP, no Largo São Francisco, Centro da capital paulista. Foi ali, nessa data que já podemos considerar histórica, que se deu a leitura da “Carta às Brasileiras e aos Brasileiros em Defesa do Estado Democrático de Direito”. Pela primeira vez depois de décadas, vemos um tão amplo arco ideológico se unificando em torno da defesa do processo eleitoral. Em verdade, é a sociedade civil se manifestando em face das ameaças postas pelo governo e por setores do Estado e da própria sociedade à eleição.
A iniciativa, endossada por 1 milhão de brasileiros e oito presidenciáveis, propôs-se a estabelecer a firme posição de que não se deve ter outra forma de acesso ao poder no Brasil que não sejam as eleições realizadas nos termos determinados e segundo os métodos estabelecidos pela Justiça Eleitoral. É ela que deve comandar esse processo, e não os militares ou agentes políticos diretamente interessados em seu resultado.
Foi um ato apartidário, sem nenhum vínculo com qualquer das candidaturas colocadas até o momento. Ele se realizou não por razões de disputa de poder, mas por razões de justiça. E chamou atenção pela pluralidade de presenças. Entre elas, a ambientalista Marina Silva, a indígena Sônia Guajajara, presidentes de partidos políticos – como Juliano Medeiros, do PSOL, e Bruno Araújo, do PSDB –, representantes do grupo Prerrogativas, organização de advogados progressistas que fizeram parte da estruturação do evento, e líderes do movimento das Diretas Já dos anos 1980, entre eles Osmar Santos, Casagrande e Juca Kfouri.
Houve quem, de alguma maneira, tentasse deslegitimar a leitura do último 11 de agosto atribuindo à manifestação intenções de teor ideológico esquerdista, buscando dissociá-la de seu único intuito, direto e imediato: a preservação da democracia. Vivemos tempos de tristes, perigosas e mal-intencionadas interpretações. Mas não é difícil desmontar tal argumento. Além da pluralidade de perfis entre os adeptos, são flagrantes os indícios de que o atual governo se embrenha por vias que se distanciam dos norteamentos constitucionais. Demarcar, agora, as fronteiras do território democrático se faz imprescindível. E envolve tanto uma juventude que se fez cidadã sob os preceitos da democracia e não aceita, em hipótese alguma, ser submetida a grilhões que rondaram seus pais, como também “gatos escaldados” que provaram do veneno da ditadura – marcantes e simbólicas, então, as participações de ícones do Diretas Já, por exemplo.
Por sinal, cabe ressaltar ainda que a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo também promoveu, no mesmo dia 11 de agosto, a leitura de uma Carta em favor da democracia. Trata-se de mais uma evidência da diversidade de perfis assolados pelos temores do cerceamento de liberdades.
Não houve citação direta do presidente Jair Bolsonaro nos conteúdos lidos. A relevância do pronunciamento extrapola individualidades, na medida em que se aplica a qualquer contexto que ameace a democracia, a qualquer tempo e em qualquer governo. Para os bons entendedores, foram ditas bem mais palavras que meia, que não há mais como se calar diante das intenções de ataques às urnas eletrônicas.
O texto da Carta lida na São Francisco, aliás, fez referência explícita, esta sim, aos questionamentos de Bolsonaro à lisura do sistema eleitoral. Diz um trecho do documento: “Nossas eleições com o processo eletrônico de apuração têm servido de exemplo no mundo. Tivemos várias alternâncias de poder com respeito aos resultados das urnas e transição republicana de governo. As urnas eletrônicas revelaram-se seguras e confiáveis, assim como a Justiça Eleitoral”.
Pouco honesta também me parece a crítica de que o evento no Largo São Francisco foi pensado para atender unicamente a interesses de profissionais da área do Direito, sugerindo como motivação para a leitura algum tipo de jogo de poderes entre o Judiciário e o Executivo. Ora, aos que atuam no campo da Justiça cabe, de fato, a manutenção dos direitos, mas não os próprios, e sim os de todos, e isso não por vaidade ou benefícios exclusivos para uma classe ou grupo específico.
É exatamente o contrário. A leitura da Carta pela democracia fez parecer pequeno o prédio da Faculdade de Direito da USP, tamanha a quantidade e a multiplicidade de atenções que para lá se dirigiram e cujos interesses legítimos precisavam caber ali. Ao mesmo tempo, poucas vezes aquele edifício esteve tão grande, imenso na magnitude do cumprimento de sua mais nobre razão de existir. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1222 DE CARTACAPITAL, EM 24 DE AGOSTO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Perigosas interpretações”
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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