Alberto Villas

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Jornalista e escritor, edita a newsletter 'O Sol' e está escrevendo o livro 'O ano em que você nasceu'

Opinião

Pequenos relatos de um confinamento levado a sério

Observo certas coisas dentro da minha casa que costumava não observar. Como um box com todos os discos de Baden Powell

Foto: piqsels
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1. Observo que as cadeiras da minha casa estão quase sempre vazias, diferentes de outrora, ocupadas por amigos e por aquelas que ainda chamamos de meninas. De tempos em tempos passamos um pano úmido nelas, embebido de álcool 70 graus e Lysoform. Só mesmo para espantar bactérias porque pó quase não há. Observo que o sol começa a bater no parapeito das janelas da sala por volta de sete, sete e pouco. É quando levo pra lá as seis canecas com pezinhos de limão, plantados com todos cuidado e que vão crescendo a cada dia. O verde das folhas misturado ao sol, resulta numa coloração única. Olho para a estante na certeza de que preciso de ânimo para tirar todos os livros e ir arrumando uma a uma, as estantes ligeiramente empoeiradas. Isso requer tempo e força. Misturados, tenho tido dificuldade de achar o que quero, como as cem fábulas fabulosas do Millôr que pretendo reler uma a uma nos intervalos de folga. Pulo da cama e observo que hoje a cozinha está impecavelmente arrumada, pronta para que eu comece a preparar o café da manhã. Os jogos americanos passaram por uma boa lavagem na máquina e alguns ficaram ligeiramente desbotados, resultado da água sanitária. Observo da janela que o pé de nêspera ganhou proporções inesperadas na jardineira e começa a ficar ligeiramente torto, procurando o céu e evitando o teto do vizinho de cima. Sei que um dia vou ter de tira-lo dali porque não tem cabimento um pé de nêspera na jardineira de um edifício, tão grande que chega a fazer sombra aqui dentro. Observo certas coisas dentro da minha casa que costumava não observar. Como um box com todos os discos de Baden Powell que, de tão escondido, não ouço há anos. “Quando eu morrer/Me enterre na Lapinha/Calça, culote, paletó almofadinha…”

2. Gente que só sabia fazer macarrão com molho de tomate pronto está aprendendo a fazer um carbonara, gente que só sabia fritar ovo está aprendendo a fazer omelete de cogumelos, gente que só sabia fazer suco de poupa está aprendendo a fazer suco de caju com limão e gengibre. Gente que nunca havia colocado a mão num ferro está aprendendo a passar roupa, gente que nunca tinha lavado uma cueca está aprendendo onde coloca o sabão em pó e onde coloca o Fofo na máquina, gente que nunca tinha passado uma vassoura no chão está descobrindo as maravilhas de um aspirador de pó. Tem gente aprendendo que água sanitária mancha a roupa, que é preciso deixar os panos de prato de molho no sabão, que roupa lavada dentro da máquina, se ficar muito tempo pega cheiro de mofo. Tem gente que já sabe que o lava-louças chama Ypê, que existe um antibactericida chamado Mr. Músculo, que o limpa-móveis chama Polyflor e que o limpa-vidros chama Veja, como a revista. Tem gente que só agora percebeu que a pá de lixo é de plástico, bem como o cabo da vassoura, que não é mais de madeira.

3. Na sala da minha casa tem um móvel antigo, fino e comprido, com seis gavetas enormes, datado do início do século passado, daqueles com engrenagem que, para abrir qualquer gaveta, é preciso abrir a primeira. Dentro dessas gavetas, durante muito tempo, guardamos os guias de viagem, alguns ainda novos, outros meio estropiados, gavetas dos sonhos. Com o tempo, eles foram ficando ali abandonados, obsoletos. Com o advento da Internet, perderam um pouco o sentido, já que temos todas as informações atualizadas, tipo “a Notre Dame está fechada há um ano porque parte dela virou cinzas”. Nunca mais esses guias viajaram conosco, pelo peso, pela inutilidade mesmo. Na última viagem que fizemos com um deles, não saiu da mala. As coleções das revistas Viagem e Turismo e da Próxima Viagem foram passadas adiante. As prateleiras com a coleção da Geo e da National Geographic continuam lá, pela atualidade científica e de comportamento. Jamais serão desfeitas. Como a coleção da Ulysse, também encadernada. Para esse ano, não temos planos de viagem. A vontade de ver o mar, nossa paixão, é muito grande, mas não sei se veremos. As caixinhas com as fotografias dos lugares por onde andamos estão organizadíssimas com essa quarentena. Se não tivessem, seria um bom motivo para arrumá-las. Paro para ouvir uma canção de Gilberto Gil: “Vamos Fugir”. Ouço também “Fuga número 2 dos Mutantes” e penso no Mestre Pastinha: “Eu já vivo tão cansado/De viver aqui na Terra/Minha mãe eu vou pra Lua/Eu mais a minha muié/Vou fazer um ranchinho/Todo feito de sapé/Amanhã às sete horas/Nós vamos tomar café”.

4. Só ouvimos e falamos nisso: Cloroquina, coronavírus, profissionais da saúde, número de infectados, isolamento, testes rápidos, curva, pandemia, covas comunitárias, água, sabão, álcool em gel, casos confirmados, respirador, distanciamento, quarentena, máscaras, testes, fique em casa, mortalidade, vacina, mortos, Wuhan, confinamento, reabrir o comércio, colapso, 600 reais, Davi Uip, UTI, hospitais de campanha, drive-true, segunda onda, Maia, novos casos, autoridades chinesas, viu o Doria?, tem de ser 70 graus, companhias aéreas, Itália, trabalhadores informais, home office, casos confirmados, óbitos, lavar bem as mãos, pacientes assintomáticos, online, febre, sem proteção, praias vazias, tosse seca, tirar os sapatos, frigoríficos, mais de 60 anos, eu tenho pedido pela internet, Covid-19, auxílio emergencial, afetar a economia, ninguém sabe o que vai acontecer, trabalhadores informais, leitos ocupados, trabalhando em casa, leitos vazios, cancelou, tá fechado, vindos da China, bancarizados, tendas, algumas pessoas caminhando no calçadão, janelas, infectologista, supermercado, lugares públicos, farmácia, positivou, negativou. Adiado, chegou a cinco mil, CPF, escola à distância, cientistas, idosos, papel da imprensa, sem dinheiro, regularizar, dá pra fazer pela Internet, Nova York, enquanto não vem a vacina, manter os empregos, sete no mesmo cômodo, pede pelo Rappi, febre espanhola, se proteger, como usar a máscara, tentei mas não atende, panelas, aparelhar o Estado. Respirando por aparelho, virologista, delivery, doações, está fora do ar, socorro aos Estados, tá fechado, filas, prorrogar, logística, desempregados, eles estão entregando, médicos e enfermeiros, faltam leitos, em situação tão grave, Caixa Econômica, saída gradual, infectados, populações indígenas. Notificação, hospitais, negociação, higienização, flexibilização, jornada reduzida, para evitar aglomeração, luvas, vagas, férias coletivas, água sanitária, entubado, crise, o inimigo é invisível, em dificuldade financeira, os números não correspondem, entrevista coletiva, EPIs, os números são maiores, vai demorar a entregar, estava bem vazio, quando tudo isso acabar, já pensou quem tem criança?

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