Luana Tolentino

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Mestra em Educação pela UFOP. Atuou como professora de História em escolas públicas da periferia de Belo Horizonte e da região metropolitana. É autora dos livros 'Outra educação é possível: feminismo, antirracismo e inclusão em sala de aula' (Mazza Edições) e 'Sobrevivendo ao racismo: memórias, cartas e o cotidiano da discriminação no Brasil' (Papirus 7 Mares).

Opinião

Pelo fim do “apedrejamento moral” das crianças negras

‘A escola precisa reconhecer sua importância nesse processo’, escreve Luana Tolentino

Foto: FG Trade Foto: FG Trade
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As linhas que se seguem partem da criança que eu fui. Ainda menina, experimentei a violência racista sem que meus professores interviessem. Em 1993, fui exposta de uma maneira que roubou a minha capacidade de aprender matemática.

Nazaré, que na antiga 3ª série nos ensinava a somar, dividir, subtrair e multiplicar, pediu que eu ficasse diante da turma: “Olhem bem para a Luana! Vocês acham que ela se parece com uma macaca?” – ela perguntou.

Naquele momento, senti minhas mãos geladas e angústia no coração. Vi um abismo se abrir sob os meus pés. Gostaria de não lembrar desse dia, mas não posso, não consigo esquecer. Quando não suportava mais os insultos que depreciavam a cor da minha pele e os colegas que imitavam som de animais cada vez que eu passava pelos corredores da escola, pedia socorro ao Dennis, meu irmão mais velho, que do alto dos seus quase 2 metros de altura, intimidava os meninos que viviam me importunando.

Na tentativa de sensibilizar os que me leem, os que me ouvem, os que já são professores e os que ainda serão, recorro à minha experiência de vida

As linhas que se seguem partem também da minha recente experiência como formadora de professores. O silêncio e a invisibilidade que têm acompanhado as crianças negras nos espaços escolares estão presentes nos currículos dos cursos de licenciatura.

Pouco se discute a respeito do racismo na educação infantil e suas consequências nas trajetórias de meninos e meninas afro-brasileiros. Partindo do pensamento do professor José Jorge de Carvalho, é possível afirmar que o racismo acadêmico contribui para a precarização da formação de educadores que atuam nesse segmento de ensino, uma vez que ao longo da graduação não são capacitados para o trato dessa questão.

As linhas que se seguem partem ainda do meu interesse, do meu desejo de por meio de textos, vídeos, entrevistas e da minha atuação em sala de aula chamar atenção para as atrocidades que crianças negras vivenciam desde os primeiros anos de vida.

Atrocidades que mutilam a autoestima, impedem o sucesso escolar, negam oportunidades, castram sonhos e usurpam o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que assevera: “Toda e qualquer criança do mundo deve ter seus direitos respeitados. (…) Toda criança tem direito a proteção especial, e a todas facilidades e oportunidades para se desenvolver plenamente com liberdade e dignidade”.

Na tentativa de sensibilizar os que me leem, os que me ouvem, os que já são professores e os que ainda serão, recorro à minha experiência de vida e também a pesquisadoras cujos estudos evidenciam que o direito humano de ser, saber e existir tem sido sistematicamente negado às crianças negras.

A partir de dados governamentais e observações em creches do Estado de São Paulo, no final da década de 1980, Fúlvia Rosemberg constatou que esse grupo encontra maiores dificuldades para conseguir vagas, sobretudo, em instituições de qualidade. A socióloga apontou também que, nesses espaços, o racismo faz com que essas crianças levem mais tempo para serem trocadas e para receberem comida, além de ganharem menos afeto.

Esses dados vão ao encontro de estudos realizados por Eliane Cavalleiro em escolas públicas paulistanas a partir de 1995. A autora do livro “Do silêncio do lar ao silêncio escolar: racismo e discriminação escolar na Educação Infantil”, afirma que entre os quatro e seis anos “as crianças negras já apresentam uma identidade negativa em relação ao grupo étnico ao qual pertencem. Em contrapartida, crianças brancas revelam um sentimento de superioridade, assumindo em diversas situações atitudes preconceituosas e discriminatórias, xingando e ofendendo crianças negras”.

Ao fazer tais afirmativas, a pesquisadora ressalta que essas construções não se dão apenas nas salas de aula. As identidades são construídas nas relações familiares, pela televisão, pela internet, em espaços religiosos, de lazer, em uma infinidade de experiências e lugares. Porém, é importante não perder de vista que a escola vem sendo um local que fomenta e reforça as ideias de inferioridade e superioridade entre brancos e negros.

Outro ponto abordado por Eliane Cavalleiro diz respeito à diferença no tratamento dispensado pelos professores aos dois grupos raciais. A partir de suas observações e da experiência como educadora, ela afirma que “as professoras ao se aproximarem das crianças negras mantinham, geralmente, uma distância que inviabilizava o contato físico. É visível a discrepância de tratamento que a professora dispensa à criança negra, quando a comparamos com a criança branca. Situações como essas induzem a pensar que com as crianças brancas, as professoras manifestam maior afetividade, são mais atenciosas e acabam até mesmo por incentivá-las mais do que às negras. Assim, podemos supor que, na relação professor/aluno, as crianças brancas recebem mais oportunidades de se sentirem aceitas e queridas do que as demais”.

Tais apontamentos levam Eliane Cavalleiro a concluir que a infância das crianças negras, em grande medida, é marcada pelo “apedrejamento moral”, uma vez que são submetidas a rituais que negam sua humanidade, que desqualificam sua pertença racial, que desvalorizam suas raízes.

Em creches e pré-escolas, aprendem desde cedo que atributos positivos são privilégios das crianças brancas, ao passo que o ruim, o mau, o negativo recaem sobre os não-brancos. Falas, práticas, brinquedos e recursos didáticos a todo tempo informam a essas crianças que aquele universo não lhes pertence.

É bem verdade que a superação do racismo na educação demanda o envolvimento de toda a sociedade, mas é inegável que a escola precisa reconhecer sua importância nesse processo, assumindo o compromisso de adotar práticas e atitudes que visam à promoção de uma educação justa e igualitária, capaz de fazer frente aos processos discriminatórios que alimentam a segregação e a violência contra os grupos historicamente excluídos.

Neste sentido, a pedagoga Nilma Lino Gomes pergunta: Será que estamos dispostos? Podemos, enquanto educadores(as) comprometidos(as) com a democracia e com a luta pela garantia dos direitos sociais, recusar essa tarefa?

Pôr fim ao apedrejamento moral das crianças negras deve ser uma meta de todos nós. As respostas para as perguntas acima dizem muito de quem somos. E da sociedade que desejamos ajudar a construir.

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