Opinião
Pela volta da saúde
Embora tenha tentado, Bolsonaro não conseguiu matar o SUS. Mas, ferido, o sistema terá de ser reconstruído pelo próximo governo
Um desafio que se impõe como tarefa inadiável diante da deterioração das condições de vida do País, promovida pelos dois últimos governos – e, em particular, pelo atual presidente – é o de resgatar, fortalecer e promover avanços no SUS. O Sistema Único de Saúde é uma das pedras angulares da nossa democracia. Dele dependem, diretamente, 160 milhões de brasileiros.
O SUS é um dos principais vetores de combate à desigualdade, a maior das chagas do Brasil, que vem aumentando de forma dramática e que se reflete em 33 milhões de brasileiros passando fome todos os dias.
O desemprego, a queda de renda e a insegurança alimentar, em conjunto com as consequências da pandemia, têm repercussões profundas no sistema de saúde. A prevenção e o controle das doenças mais frequentes, como as cardiovasculares e o câncer, tornam-se ainda mais difíceis diante do súbito aumento da demanda represada.
Entre 1988 e 2016, o SUS foi construído como a resultante de um contrato social que atravessou governos. Consolidou-se como política de Estado responsável por prestar ações e serviços com base em responsabilidades compartilhadas entre entes federativos. Mesmo com dificuldades e limitações, permitiu que a expectativa de vida dos brasileiros, em 2016, chegasse a 75 anos e 9 meses – cinco anos mais que em 2002. No mesmo período, a mortalidade infantil caiu de 26 para 13,3 óbitos de crianças com menos de um ano por mil nascidos vivos.
Os princípios do SUS – de universalidade, integralidade, equidade, gratuidade e controle social – passaram, porém, a ser solapados a partir do impeachment de 2016. O regime fiscal adotado pelo governo Temer, materializado na Emenda Constitucional 95, retirou, entre 2018 e 2022, 36,9 bilhões de reais do orçamento federal voltado à saúde.
Considerado todo o gasto público de saúde em 2019, o SUS aplicou apenas 3,79 reais per capita/dia para viabilizar o acesso a serviços que vão das vacinas aos transplantes. O valor é inferior ao de uma passagem de ônibus. O gasto total em saúde, em 2019, foi de 9,6% do PIB, mas o dispêndio público correspondeu a apenas 3,8% do PIB, ou seja, 40% do gasto total em saúde. Comparativamente, em países com sistemas universais, o indicador da participação do setor público gira em torno de 70% do gasto global em saúde.
Não há país no mundo que tenha regra de congelamento de despesa que implique em queda do gasto real per capita, conforme previsto na EC 95. A manter-se o quadro atual, o SUS será inviabilizado, resultando em uma situação especialmente dramática para os mais velhos, já que a despesa federal com saúde por pessoa idosa cairá, em termos reais, pela metade entre 2017 e 2036.
O atual governo tentou, mas não conseguiu, ferir de morte o SUS. A partir da ação de trabalhadores, gestores, conselheiros de saúde e de muita gente que compreende sua importância, o sistema ousa resistir à pretendida, mas frustrada, desvinculação orçamentária proposta pelo ministro da Economia, que tinha como objetivo eliminar o financiamento vinculante e promover a privatização da saúde.
O acesso universal seria assim substituído pela distribuição de um voucher para gastos em saúde das famílias que hoje dependem integralmente do SUS. Outras propostas de desmonte ressurgem cotidianamente, como o “Open Health”, proposto pelo atual ministro da Saúde.
O presidente lidou com a pandemia de forma criminosa e é responsável por parte significativa dos mais de 670 mil mortos pela Covid-19. Ele trocou ministros como quem troca de camisa, substituindo a gestão técnica e científica por uma linha de comando militar. Tornou o Ministério da Saúde uma fonte de fake news, apregoando o uso de cloroquina e tratamentos ineficazes. Abriu as portas para lobistas que tentaram vender vacinas superfaturadas a 1 dólar por dose, como comprovou a CPI do Senado.
Políticas como as de atenção básica, saúde mental e atenção à saúde da mulher foram destruídas, orientadas por princípios retrógrados, sem lastro científico, privatizantes, negacionistas e discriminatórios. O governo enfraqueceu as agências reguladoras e promoveu a liberação maciça de agrotóxicos vetados no mundo, atentando contra o meio ambiente e a saúde. E esses são apenas alguns exemplos dessa macabra forma de governar que precisa ter fim.
No contexto de reconstrução nacional, a partir de 2023, uma das tarefas primordiais será o resgate do SUS. Só assim será possível garantir aos brasileiros o direito à saúde. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1214 DE CARTACAPITAL, EM 29 DE JUNHO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Pela volta da saúde”
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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