3ª Turma

Para que(m) serve o nosso conhecimento?

O que se vê é uma narrativa estrutural de negação das histórias, assentada numa concepção fatalista e determinista.

(Foto: Reprodução)
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Vivemos num momento muito delicado para a carreira docente e para as pessoas pesquisadoras das ciências humanas. No caso específico de historiadoras e historiadores, trabalhamos não apenas com os baixos salários da carreira docente, mas também com frequentes tentativas de deslegitimação dos profissionais da área por parte de um grupo reacionário, identificado com as ideias de extrema direita e, em parte, ligado ao governo Bolsonaro.

Este grupo, contando com nomes como o astrólogo Olavo de Carvalho e o jornalista Leandro Narloch (autor de uma sequência revisionista de livros chamada Guia Politicamente Incorreto), confronta historiadores e historiadoras profissionais com narrativas que, além de irem contra muitos dos avanços epistemológicos e teóricos que a historiografia tem apresentado nas últimas décadas, ignoram métodos e práticas necessárias desse tipo de trabalho – necessárias para que se trate as fontes históricas de uma forma séria e ética, um compromisso primário que um(a) profissional da história deve ter com seu público.

Esse confronto ao trabalho das pesquisadoras e pesquisadores culmina em um projeto chamado Brasil Paralelo, em que os nomes citados e alguns outros conhecidos conservadores e pensadores da direita e da extrema direita brasileiras são entrevistados e apresentam a história brasileira de forma extremamente eurocentrada e sua perspectiva enquanto uma verdade histórica única, imutável, violada pelos professores e professoras “comunistas”, “doutrinadores”, etc.

Em tal projeto, há ações voltadas para uma revisão ou negação da narrativa histórica brasileira, desde o período colonial, passando pela ditadura militar, até os dias atuais, imputando clichês e criando um discurso incoerente e falacioso sobre evidências já trabalhadas nas pesquisas em confronto.

Na mesma linha de pensamento, há também confrontos feitos por Ana Caroline Campagnolo, atualmente deputada estadual do Estado de Santa Catarina (PSL/SC), quanto às propostas e às narrativas dos movimentos feministas. A partir de uma narrativa pessoal, Ana Caroline Campagnolo, na Introdução de seu livro “Feminismo: perversão e subversão”, afirma-se como uma mulher virtuosa e conta que resolveu procurar a origem do fenômeno de ela ser tratada de forma violenta em diversos locais, exatamente em razão de suas virtudes de mulher defensora de um namoro casto,  filha de família heteroafetiva e cristã.

Aí, teria “descoberto” que o feminismo utiliza, como propaganda, o tripé igualdade salarial, direitos civis e combate à violência, mas que isso seria maquiagem diante do que seria o foco do movimento: a revolução sexual. A partir daí, a autora pega emprestada essa expressão de algumas autoras feministas, bem se apropria de outras categorias, mas distorcendo o conteúdo das próprias autoras utilizadas. Não observa assim, a coerência teórica das autoras apresentadas, bem como não emprega o método devido para poder apresentar uma revisitação das teorias.

Apresenta, em tal panorama, um discurso de ataque a questões profundamente morais, como promiscuidade, imoralidade sexual, irresponsabilidade paterna, ódio ao cristianismo, violência epistêmica (não permitir a fala do outro), etc. Nessa linha, mostra-se como a reveladora de tais questões que seriam defendidas pelo feminismo, colocando-se a sacrifício em nome da denúncia necessária.

É um discurso do bem contra o mal, que simplifica equivocadamente a realidade. É um discurso fácil de ser assimilado, muito mais do que as pesquisas que apresentamos na academia, os quais contemplam os fenômenos em sua complexidade.

Outra ocorrência interessante para reflexão é o grande número de profissionais, não pertencentes ao campo de conhecimento da histórica, pretendendo a narração de fatos como se autoridade fosse no assunto. Um exemplo foi o caso do Ministro Gilmar Mendes, no MS 36.380/DF, afirmando que as versões históricas dos fatos ocorridos no anos do golpe civil-militar caberiam no que se entende como pluralismo – demonstrando desconhecimento do que é pluralismo e para com a construção da histório, desrespeitando seu método.

Ainda, em algumas situações, há outros profissionais, externos ao campo da história, publicando livros que acabam virando best sellers. A capacidade comunicativa destes profissionais é reconhecida, assim como seu conhecimento em relação à história consolidada ou em seu território de conhecimento específico. Muitos escrevem bem, se comunicam bem, sabem ser sucintos, diretos, objetivos, e trazem o compromisso de regras fáceis para lidar com o dia-a-dia. Muitas vezes, é um discurso bem mais digesto que as nossas escritas acadêmicas, que acaba remanescendo em um bolha universitária.

E aí vem a questão: até que ponto o conhecimento acadêmico é acessível e chega a todas as instâncias sociais? Para que(m) serve o nosso conhecimento?

No que se refere ao ofício de historiadores e historiadoras, ao menos em ambiente acadêmico, não parece buscar com a mesma intensidade subsídios para uma escrita que trabalhe a narrativa, a atenção do público e a linguagem acessível. Muitas vezes é pesado ler um texto de história por conta de uma escrita pesada, para além do conteúdo.

Ao mesmo tempo, uma prática específica do campo científico da história faz com que historiadores e historiadoras profissionais se diferenciem, em muitas situações, mas também com suas exceções, de pessoas que escrevem história sem uma formação na área: o método, a teoria, a cientificidade do campo, uma “matriz disciplinar”. E estas questões acabam por não receber, geralmente, a atenção devida de quem não tem uma formação na área. O que não significa que não se possa escrever um bom texto de história, mas é interessante que para isso exista a presença de profissionais da área para, ao menos, mediar o debate.

 

Não pretendemos aqui dizer quais devem ou não escrever a história, mas sim que é importante o papel da criticidade, da metodologia, dos referenciais teóricos e de um conhecimento sobre análise de fontes no que diz respeito à historiografia e a produção especializada na área de análise para que um trabalho de história seja feito com qualidade. Também é importante aqui dizer que não estamos buscando algum tipo de defesa corporativista, muito menos vitimizando historiadores e historiadoras.

A verdade é que hoje colhemos os frutos do nosso próprio distanciamento da sociedade de forma geral, do público não-acadêmico, pessoas que não consideramos nossos “pares”, ocorrência que se une a uma falta de atenção (e hoje um projeto) do Estado em relação ao tratamento da história e o espaço encontrado por aqueles que pretendem trabalhar as narrativas revisionistas e negacionistas. Uma obra de história que não apresenta aos leitores um método bem trabalhado, conhecimento sobre as fontes e seu tratamento, corre o risco de abordar a história de forma simplificada, factual e como uma curiosidade, simplesmente.

Cartaz promocional do Congresso online do Brasil Pararelo

Desta forma, reproduzindo um discurso hoje já ultrapassado, de uma história única, de uma história como simples reprodução documental, um enaltecimento de “grandes figuras” da história, típica do século XIX, sem uma crítica fundamentada e baseada no estado da arte onde se encontra a historiografia nos dias de hoje, como alerta o prof. Fernando Nicolazzi em entrevista ao canal Historiar-se, no Youtube.

O produto desta equação é uma deslegitimação de historiadores e historiadoras enquanto pessoas habilitadas, um afastamento cada vez maior entre o tripé “historiador/historiografia/público”, e a dissolução da importância social dos profissionais da área , já que o consumo de conhecimento histórico passa a ser fruto de uma produção com fins lucrativos, com fins pedagógicos e sociais que visam distorcer e atacar o conhecimento construído nas universidades, principalmente as públicas, do Brasil. Este enfraquecimento acaba por dar legitimidade e público para movimentos como o Brasil Paralelo, que, explicitamente, tem seus valores ideológicos, e estes vão contra aquelas questões que  foram pontuadas anteriormente.

Somos produtores e produto de pensamento crítico e de métodos de análise que podem ajudar na construção de uma ação crítica perante a sociedade. Porém, para retomar este papel e combater estas narrativas conservadoras precisamos disputar este espaço ocupado hoje por outros sujeitos.

 

Para isto é importantíssimo que usemos uma linguagem mais acessível, assim como plataformas, que não sejam as de periódicos científicos – ou que não sejam apenas estas, através das quais o público geral poderá acessar a produção especializada e sobre ela refletir, passando assim a fazer parte do cotidiano das pessoas o pensamento crítico sobre a história e o próprio  entendimento enquanto sujeito ativo na prática desta história.

O principal erro é insistir na reprodução dos limites que a própria academia aponta em si mesma. Ao mesmo tempo em que criticamos a inércia que a universidade sofre em não buscar a ampliação de seus limites em um diálogo vivo com a sociedade, fazemos isso sem praticar esta proposição; fazendo uma crítica externa, mas desde dentro.

Ou seja, esquecemos o princípio básico da práxis, tão cara à ciência moderna e à história da historiografia: a prática e a teoria caminhando de mãos dadas. É importante, então, que façamos a crítica aos métodos e limites da academia de modo concomitante às tentativas de ampliação do espaço de atuação de historiadores e historiadoras profissionais: análise, aplicação, análise, etc.

Assim, poderemos encontrar espaço para trabalhar junto à sociedade as críticas que fazemos aos movimentos revisionistas, localizar as disputas pela memória e pela própria história e mediar a produção dos sujeitos históricos que, antes de tudo, devem se entender como agentes da própria história, que é um bem público.

Nesse sentido, pela importância de tal bem público para tanto a memória e a identidade coletivas, mas também de atravessamento à memória e identidade individuais, destaca-se que a revisitação de nossas narrativas históricas não podem ser feitas a partir do senso comum, mas tendo como base todo o método da ciência da História.

Em tal contexto, Matheus Henrique de Faria Pereira (2015), no artigo “Nova direita? Guerras de memória em tempo de Comissão de Verdade (2012-2014)”, alerta que, além do respeito às provas sobre a qual se funda a narrativa histórica, “há um nível mais profundo em que deve funcionar a desconstrução da negação e do revisionismo: interpretações melhores e mais sofisticadas”.

Contudo, o que se vê atualmente, a partir das ações mencionadas no início deste texto, é uma narrativa estrutural da negação da histórias, “assentada numa concepção fatalista, determinista e homogênea do tempo histórico”.

Em outras palavras, pode-se afirmar que a negação ou o revisionismo das narrativas históricas, nesse caso, “é um tipo radical e perigoso de fundamentalismo (diverso, portanto, do relativismo cultural, que é inclusivo e reconhece o valor da diversidade), pois coloca em questão o poder de veto das fontes com base em lógicas de justificação e dissimulação que pretendem extrapolar, estender, manipular, e, no limite, negar o poder de veto das fontes”.

O alerta que aqui se faz é que o revisionismo e a negação das narrativas assentes em nossa memória coletiva, por motivos de aceitação acadêmica via método, representa também uma reconfiguração, não sem efeitos perversos, da identidade individual e coletiva de quem contenha uma historicidade vinculada às narrativas alteradas. Além disso, representa uma postura ideológica de se abandonar determinada linha de raciocínio para adotar uma outra. É, portanto, um projeto político prenhe de ideologia.  

Da leitura de Ricoeur, Pereira irá mencionar que o revisionismo, sem a observância ao método, redundaria no abuso de memória e de esquecimento, em particular, de memória manipulada. Nesse sentido, a negação e o revisionismo brasileiro, no caso, da ditadura, seriam impulso para um “processo de manipulação da memória e da história” – e isso acontece porque “a função seletiva da narrativa […] oferece a manipulação, a oportunidade e os meios de uma estratégia engenhosa que consiste, de saída, numa estratégia do esquecimento tanto quanto da rememoração”.

Em tal projeto, vê-se a invisibilização da complexidade arguida pela história a partir de suas evidências e dos trabalhos dos historiadores e historiadoras, a manipulação de tais evidências para se formar um novo imaginário social, e a desconsideração dos pesquisadores e pesquisadoras, por conta de argumentos pessoais – que não contestam ideias, mas operam no nível de ataque à própria competência do profissional.

Nós, da academia, vemos isso. O desafio está em como fazermos com que esse conhecimento possa ser acessível e compreensível a todas e a todos. É um desafio de romper com a nossa linguagem floreada, com o academicismo e com o formalismo produtivista e questionar, de novo e de novo: para que(m) serve o nosso conhecimento?

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