País da casa-grande e da senzala mostra seu rosto verdadeiro

A exceção é o ex-fundão do Brasil. Nem mesmo Macunaíma poderia hoje nos representar

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Máscaras destinam-se a esconder as feições de quem cobre o rosto e, em casos frequentes, os humores secretos, sentimentos e pensamentos do usuário. As máscaras carnavalescas mais comuns no Brasil são originárias da Commedia dell’Arte, forma teatral muito popular na Itália dos séculos 16 e 17, entrecho de diálogos improvisados de acordo com um padrão tradicional. Carlo Goldoni, teatrólogo veneziano setecentista, as fez reviver em algumas de suas peças. A mais célebre é Arlequim, Servidor de Dois Amos, conforme a encenação que deslumbrou o mundo em tournés vitoriosas na década de 50 do século passado na versão do Piccolo Teatro de Milão. São Paulo esteve no roteiro e eu figurei na plateia do Teatro Santana em uma noite de 1954 e aplaudi encantado um Arlequim que, além de ator, havia de ser dançarino e ginasta acrobático. Mandava a regra que um Arlequim fosse o intérprete de um papel único até quando tivesse fôlego para executá-lo a contento.

Em geral, as máscaras da Commedia tinham lugar de nascimento e endereço certo e sabido, falavam com o sotaque do berço natal e apresentavam características e vezos atribuídos ao povo daquela cidade, ou região que fosse. Arlequim é de Bérgamo, norte da Lombardia, e receio que hoje ele votaria na Liga de Matteo Salvini. Pantalone, velhote ranzinza, é veneziano, enquanto Balanzone é doutor em homenagem a Bolonha, onde ele nasceu e foi fundada a primeira universidade do mundo. Colombina é desabrida aia ou estalajadeira de origem vêneta, enquanto Rosaura é a dama roliça na cidade dos doges. Há também personagens sem pátria, como Capitan Fracassa, também conhecido como Matamoros, e ainda o mítico Polichinelo, nascido nas brumas de um passado remoto, figura que na Commedia acabou por encarnar o espírito napolitano.

Macunaíma poderia galgar a ribalta e representar a nós todos com sua ginga malandrinha tipicamente nativa. A criatura de Mário de Andrade surgiria impetuosamente na memória dos cidadãos letrados, mas isto seria possível nos dias de hoje? Macunaíma não passa de figura inimaginável nas circunstâncias atuais, o matreiro espertalhão à procura da sobrevida. Sinto muito ao constatar que a Commedia não cabe no Brasil de Bolsonóquio, intérprete da demência no poder. A Commedia, por mais ingênua, não deixava de ser prova de vitalidade e senso de humor, uma pantomima mágica. Já o Brasil hodierno vive uma situação patológica.

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À vista das pesquisas, forçoso é reconhecer que uma porção expressiva de brasileiros, entre a minoria rica e a maioria cada vez mais pobre, aceita Bolsonaro com insana tranquilidade, quando não se identifica com ele e seu governo. Iludem-se os intelectuais dispostos a crer que o povo saberá salvar o País, embora abandonado ao seu destino por uma pretensa esquerda que não soube levá-lo à consciência da cidadania. Creio, com profundo pesar, que a máscara tenha caído e que o Brasil, ao cabo de 519 anos de história, mostre o seu rosto verdadeiro.

Com uma exceção, a resistência paraíba.  O fundão do Brasil, como se dizia com desprezo no Centro-Sul que agora não esconde a cara, é uma larga fatia do País onde os anseios democráticos permanecem juntamente com a defesa dos valores da civilização ocidental. Bolsonaro, endossado pelo Brasil demente, já identificou seu inimigo, o Nordeste. Aos governadores da região, a começar pelo maranhense Flávio Dino, citado especificamente pelo ex-capitão, o apoio irrestrito de CartaCapital.


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