Alberto Villas

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Jornalista e escritor, edita a newsletter 'O Sol' e está escrevendo o livro 'O ano em que você nasceu'

Opinião

Ouvi dizer na televisão que pensar pode

A pandemia se espalhou, fomos informados do número de mortos na China, no Japão, mas quase nenhuma notícia dos africanos

Pássaro. Foto: iStock
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Pardal existe por tudo quanto é canto do mundo, quase todos iguais. Só no Japão que não são idênticos aos daqui, aos de Djibuti, aos de Cariri. Ganharam uma leve plumagem amarela, talvez resultado de um cruzamento com canarinho belga. Mas não cantam também, vivem nas ruas de Tóquio, de Kyoto, como qualquer outro.

Quando cheguei em Paris para enfrentar aqueles longos invernos, assim que vi um pardal na Rue Souflot, logo perguntei como era o nome dele por ali e alguém me explicou que era Piaf, como Edith, que conhecia pouco, mas aos poucos fui me apaixonando. Ela pegou o nome do passarinho por viver cantando pelas ruas do Quartier Latin. Mas piaf não canta, guardei isso para sempre e nunca entendi direito. Talvez Edith quisesse apenas a liberdade de um pardal e não o pio. Nunca vi um ninho de pardal, mas sei como vivem, o que comem, por onde andam. Sei distinguir o macho de uma fêmea. O macho tem manchas marrons escuras nas asas e uma espécie de babador preto no peito. São maiores que as fêmeas, que têm uma plumagem marrom clara e uniforme. Gosto dos pardais e sempre que posso dou migalhas de pão para eles, sua comida preferida. Há cento e onze dias não vejo um. Da janela, procuro e vejo apenas maritacas, sabiás que são muitos e um beija-flor que se aproxima da varanda para beber água fresca que troco todo dia no bebedor colorido. Nesses tempos de coronavírus, ando tentando desconstruir a frase genial de Mario Quintana. Eles passarinho, eu passarei. 

 

Toda manhã, depois de folhear os jornais nacionais, eu me pergunto: que notícias me dão da África? Quase nenhuma, nenhuma mesma. Vejo fotografias de pessoas circulando usando máscaras em Londres, em Amsterdam, em Nova York, em Roma, mas nunca vejo ninguém caminhando pelas ruas de Kwanza, de Guitega, Yaoundé, Bamako ou Nouakchott. A pandemia se espalhou, fomos informados do número de mortos na China, no Japão, na Tailândia, no Laos, na Austrália, entre os índios, os quilombolas, os esquimós e os aborígenes. Mas quase nenhuma notícia dos africanos. O que chega aqui são apenas hard news, de tempos em tempos. Um general que tomou uma rádio aqui e deu um golpe ali, uma guerra lá e outra acolá. Ouvimos Chico César cantando Mamma África e Chico Buarque cantando a morena de Angola que leva o chocalho na canela, sem nunca saber se é ela que mexe o chocalho ou o chocalho que mexe com ela. Aquela camarada do MPLA. Acordei querendo saber como vai o povo de Freetown, de Lomé, de Kampala, de Lusaka, de Harare. Cartas para a redação, please

Ouvi que pensar pode no primeiro dia útil da semana, da boca de um tiozinho no papo de segunda. Se pensar pode, quero pensar em ir pro sertão colocar ração de poedeira para as galinhas legorn, jogar milho pros pombos, farelo pros porcos, canjiquinha pros pintinhos. Quero experimentar a rapadura ainda mole, ver as águas do rio correr, ouvir os pássaros cantar. Quero tomar sol no rosto, correr domingo no parque, ver o sangue no chão. Quero pensar em ir ao Instituto Moreira Sales comprar a Quatro cinco um de junho com Caetano desfigurado na capa. Quero tomar chuva, molhar meu All Star branco pra depois enfiar dentro da máquina de lavar com Vanish. Quero chutar pedras no caminho, comer uma coxinha na Cristallo, procurar lichias no sacolão só de brincadeira porque sei que a safra ainda está verde. Perguntar o nome do bebê no carrinho, errar mais uma vez: como ele chama? É ela! Como ela chama? É ele! Já que pensar pode quero pensar em ir-me embora daqui, voltar pra Firenze, passar horas na Feltrinelli procurando um livro do Erri De Luca que ainda não li, tomar um sol levante no Zoe, fazer a milésima foto do por do sol no Arno, levar umas latinhas de San Pellegrino de frutas exóticas pra casa, ler o La Repubblica todos os dias, comprar o Il Manifesto na sexta, a L’Expresso no domingo. Voltar ao mercado pra dividir em três uma bisteca do tamanho de um boi, acompanhada de uma Moretti estupidamente gelada. Ouvir crianças falando italiano, avere un sconto, papà! Já que pensar pode, eu quero pensar em ir, eu quero ir, minha gente, eu não sou daqui, eu não tenho nada, quero ver Irene rir, quero ver Irene dar sua risada.

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