

Opinião
Os verões do verde-amarelo colaborativo e libertário
Trocar em nível internacional para crescer deveria estar no cerne do fazer diplomático


Em russo, língua diagramada pelos Santos Cirilo e Metodio (daí o alfabeto cirílico), não se diz: “me chamo…”; mas: “chamam-me…” Essa precisão demonstra a importância da exatidão para aquele povo, o que também se pode aquilatar pelos movimentos ponderados, rigorosos e previdentes do xadrez, tão bem amoldado à lógica russa. Com efeito, a cultura é um ativo para a análise da política tanto de um país, quanto do conjunto das nações.
Aquele que pode ser considerado o maior filósofo político do século passado, o italiano Antonio Gramsci, privilegiou a cultura, em detrimento da economia, quer como móvel da interpretação, quer como móbil da ação política. Célebre o chamamento dele para o pessimismo na análise e o otimismo na ação, denotando o caráter voluntário do atuar político, interna ou externamente. A língua inglesa também nos brinda com aforismo, rimado: “A friend in need is a friend indeed“, cuja tradução seria “um amigo (a) na necessidade é um amigo (a) de verdade”.
A transposição dessa máxima da esfera interpessoal para a coletiva, especificamente para as relações internacionais, permite-nos refletir sobre a importância da ação, que no âmbito internacional – via de regra – se traduz em cooperação. No plano religioso – um superestrato cultural para o confucionismo chinês, a religião cristã, hegemônica no Brasil, também coloca a ação à frente da retórica, sendo o Cristo o verbo de Deus que se encarna. Os evangelhos proclamam também que é pelas ações que serão conhecidos os que verdadeiramente fazem a vontade do Pai, que Jesus inclui como membros de sua família.
Internacionalmente, co-operar deveria estar no cerne do fazer diplomático, nas variadas vertentes: cultural; educacional; humanitária; científica, técnica e tecnológica; financeira; comercial etc. Na prática, para cooperar, são necessários desígnio e instrumentos adequados. Demais, para ser sustentável, a vontade política deverá ser fruto não apenas do governo, mas também de base mais ampla, integrada por todas e todos os possíveis interessados nas variadas formas de cooperação acima exemplificadas.
Por essa razão, fora incluída no Programa Plurianual de Governo 2016-2019 a criação do conselho de cooperação internacional brasileiro, o qual, porém, não seria posteriormente implementado. Ao lado disso, cabe cuidar em que a cooperação internacional seja horizontal (terminologia que a Chancelaria brasileira adotara, por ser mais precisa do que “sul-sul”, uma vez que não se trata de pertença a um hemisfério, mas da forma como a cooperação é pactuada entre as partes).
De forma coerente, concomitante e coincidente, Brasil, Índia e China rejeitamos, naquele período, o clássico binômio doadores-beneficiários, em proveito da terminologia paulofreiriana “parceiros”, em que ambos têm a consciência, a participação e a responsabilidade pela cooperação empreendida.
➤ Leia também: Globalização ou não globalização, essa é a questão.
Os benefícios auferidos pelo Brasil com ações de cooperação humanitária, por exemplo, naquele período, são incalculáveis; foram desde a difusão de produtos nacionais – como o arroz, que doamos a países africanos e outros em situação de fome aguda – que foi objeto de importação por parte de países que desconheciam nossa excelente rizicultura; até a replicação de tecnologias sociais, como o programa de aquisição de alimentos (PAA) para a alimentação escolar, em os alunos conseguem maior qualidade nutricional, maior capacidade de aprendizagem, e incluem-se as famílias deles na comercialização, valendo recordar que três quartos dos pobres no mundo ainda se encontram no meio rural. Vale igualmente notar que, no Brasil, apesar da urbanização violenta das últimas décadas – resultante da expulsão do campo, metade da pobreza extrema ainda está concentrada no meio rural.
Graças a essa e outras políticas públicas, o país granjeou imagem positiva, que iria impulsionar todas as demais trocas e exportações nacionais, de maneira mais efetiva, sustentável e profunda do que ações singularmente voltadas à promoção externa de setor econômico em específico. Com efeito, para os que tiveram a fortuna de viajar ao exterior naquele período, não escapou a visão das onipresentes camisetas que os jovens europeus usaram naqueles verões: aquelas com a estampa do gênio musical libertário jamaicano, Bob Marley, e o verde-amarelo, do Brasil. Foram bons tempos aqueles.
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome
Depois de anos bicudos, voltamos a um Brasil minimamente normal. Este novo normal, contudo, segue repleto de incertezas. A ameaça bolsonarista persiste e os apetites do mercado e do Congresso continuam a pressionar o governo. Lá fora, o avanço global da extrema-direita e a brutalidade em Gaza e na Ucrânia arriscam implodir os frágeis alicerces da governança mundial.
CartaCapital não tem o apoio de bancos e fundações. Sobrevive, unicamente, da venda de anúncios e projetos e das contribuições de seus leitores. E seu apoio, leitor, é cada vez mais fundamental.
Não deixe a Carta parar. Se você valoriza o bom jornalismo, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal da revista ou contribua com o quanto puder.