Elnara Negri

Livre-docente pela Faculdade de Medicina da USP e pneumologista do Núcleo Avançado de Tórax do Hospital Sírio-Libanês

Opinião

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Os pássaros e o fim do mundo

Estudos científicos mostram os efeitos do ambiente ao nosso redor sobre o desenvolvimento cerebral e as doenças psiquiátricas

Os pássaros e o fim do mundo
Os pássaros e o fim do mundo
Depressão. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil.
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Trabalho no centro de São Paulo e vivo a maior parte do tempo entre a região da Bela Vista e a Avenida Dr. Arnaldo, alternando atendimentos médicos e atividades de ensino e pesquisa.

Sempre que estou no trabalho – por vezes sobrecarregada de afazeres que se somam às preocupações do dia a dia – e sou presenteada nestas tardes de setembro com o canto do sabiá entrando pela janela, intenso e vivo nesta cidade tão cheia de asfalto, maltratada e poluída, me vem uma sensação de calma e uma frase surge em minha mente: hoje ainda não é o dia do fim do mundo.

Respiro fundo, agradeço a Deus e à natureza, que, na minha cabeça, são a mesma coisa, e ganho um sopro de energia para continuar na luta do dia. Essa sensação é forte e boa. Pensando nisso resolvi pesquisar se mais alguém já havia sentido ou estudado essa sensação e encontrei um trabalho científico de outubro de 2022, realizado por pesquisadores do Instituto Max ­Planck, na Alemanha.

Os cientistas estudaram o efeito do canto dos pássaros no estado mental de 275 pessoas e observaram que ele é capaz de produzir boas emoções, negativando sensações de angústia, ansiedade e paranoia nos voluntários estudados. Pasmem vocês: negativar a paranoia. O canto dos pássaros pode atenuar pensamentos paranoicos.

A paranoia, por definição, caracteriza-se por um estado constante de ansiedade e desconfiança em resposta a um medo. Pensamentos paranoicos dão origem a crenças falsas que aumentam o temor e a ansiedade num ciclo de autodestruição mental. E o medo constante e as falsas crenças não permeiam nossos tempos tão carentes do canto dos pássaros?

Outro estudo interessante, de abril de 2024, publicado na revista ­Molecular Psychiatry (Nature) revisou os efeitos do ambiente ao nosso redor sobre o desenvolvimento cerebral e as doenças psiquiátricas. Vários componentes do ambiente em que vivemos afetam nossa saúde mental, inclusive alterando a chamada plasticidade neural, a conformação e distribuição das células em nosso cérebro.

Esses fatores vão desde a poluição ambiental até a estética das construções, a quantidade de cobertura vegetal, a temperatura, o barulho e a violência. Essas variáveis podem alterar a estrutura cerebral mesmo na vida adulta, acelerando quadros de demência e Parkinson, entre outras doenças.

A exposição a esses fatores, particularmente nas fases decisivas do desenvolvimento cerebral, como infância e adolescência, pode levar a sequelas irreversíveis por toda a vida, gerando uma imensa gama de transtornos mentais, dificuldade de aprendizado e, consequentemente, fomentando a estagnação social.

O mesmo estudo alerta, por outro lado, que a exposição a ambientes onde a natureza se faz presente é capaz de diminuir a instalação dessas lesões e guiar a neuroplasticidade para redução da ansiedade, aumento da atenção e melhora do desenvolvimento cognitivo. Além da estética envolvida em se viver com mais áreas verdes e natureza, a sensação de segurança em nossa vizinhança também foi capaz de melhorar a plasticidade neural. Ou seja, estamos destruindo tudo aquilo que precisamos para ter paz e saúde mental.

Neste fim de semana, vivi uma experiência triste. Vi uma cachoeira, antes linda, que teve seu curso moldado por plástico e concreto para acomodar o turismo local. O entorno, que era repleto de araucárias, foi desmatado para abrigar um estacionamento de ônibus.

Rumamos assim para a estética do desmatamento, da urbanização desenfreada e sem planejamento, da ocupação e destruição de áreas de preservação sem cuidado e repleta de brutalidade e ignorância por todos os lados.

Temos, no País, várias gerações que foram crescendo sem acesso a educação e cultura. E, dentre aqueles que têm esse privilégio de acesso, muitos se encastelam, sem ligar para a marginalização e exclusão populacional ao seu redor, julgando-se protegidos do efeito rebote dessa negligência social. Isso tem um limite. Será que estamos chegando a ele? •

Publicado na edição n° 1331 de CartaCapital, em 09 de outubro de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Os pássaros e o fim do mundo’

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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