

Opinião
Os pássaros e o fim do mundo
Estudos científicos mostram os efeitos do ambiente ao nosso redor sobre o desenvolvimento cerebral e as doenças psiquiátricas


Trabalho no centro de São Paulo e vivo a maior parte do tempo entre a região da Bela Vista e a Avenida Dr. Arnaldo, alternando atendimentos médicos e atividades de ensino e pesquisa.
Sempre que estou no trabalho – por vezes sobrecarregada de afazeres que se somam às preocupações do dia a dia – e sou presenteada nestas tardes de setembro com o canto do sabiá entrando pela janela, intenso e vivo nesta cidade tão cheia de asfalto, maltratada e poluída, me vem uma sensação de calma e uma frase surge em minha mente: hoje ainda não é o dia do fim do mundo.
Respiro fundo, agradeço a Deus e à natureza, que, na minha cabeça, são a mesma coisa, e ganho um sopro de energia para continuar na luta do dia. Essa sensação é forte e boa. Pensando nisso resolvi pesquisar se mais alguém já havia sentido ou estudado essa sensação e encontrei um trabalho científico de outubro de 2022, realizado por pesquisadores do Instituto Max Planck, na Alemanha.
Os cientistas estudaram o efeito do canto dos pássaros no estado mental de 275 pessoas e observaram que ele é capaz de produzir boas emoções, negativando sensações de angústia, ansiedade e paranoia nos voluntários estudados. Pasmem vocês: negativar a paranoia. O canto dos pássaros pode atenuar pensamentos paranoicos.
A paranoia, por definição, caracteriza-se por um estado constante de ansiedade e desconfiança em resposta a um medo. Pensamentos paranoicos dão origem a crenças falsas que aumentam o temor e a ansiedade num ciclo de autodestruição mental. E o medo constante e as falsas crenças não permeiam nossos tempos tão carentes do canto dos pássaros?
Outro estudo interessante, de abril de 2024, publicado na revista Molecular Psychiatry (Nature) revisou os efeitos do ambiente ao nosso redor sobre o desenvolvimento cerebral e as doenças psiquiátricas. Vários componentes do ambiente em que vivemos afetam nossa saúde mental, inclusive alterando a chamada plasticidade neural, a conformação e distribuição das células em nosso cérebro.
Esses fatores vão desde a poluição ambiental até a estética das construções, a quantidade de cobertura vegetal, a temperatura, o barulho e a violência. Essas variáveis podem alterar a estrutura cerebral mesmo na vida adulta, acelerando quadros de demência e Parkinson, entre outras doenças.
A exposição a esses fatores, particularmente nas fases decisivas do desenvolvimento cerebral, como infância e adolescência, pode levar a sequelas irreversíveis por toda a vida, gerando uma imensa gama de transtornos mentais, dificuldade de aprendizado e, consequentemente, fomentando a estagnação social.
O mesmo estudo alerta, por outro lado, que a exposição a ambientes onde a natureza se faz presente é capaz de diminuir a instalação dessas lesões e guiar a neuroplasticidade para redução da ansiedade, aumento da atenção e melhora do desenvolvimento cognitivo. Além da estética envolvida em se viver com mais áreas verdes e natureza, a sensação de segurança em nossa vizinhança também foi capaz de melhorar a plasticidade neural. Ou seja, estamos destruindo tudo aquilo que precisamos para ter paz e saúde mental.
Neste fim de semana, vivi uma experiência triste. Vi uma cachoeira, antes linda, que teve seu curso moldado por plástico e concreto para acomodar o turismo local. O entorno, que era repleto de araucárias, foi desmatado para abrigar um estacionamento de ônibus.
Rumamos assim para a estética do desmatamento, da urbanização desenfreada e sem planejamento, da ocupação e destruição de áreas de preservação sem cuidado e repleta de brutalidade e ignorância por todos os lados.
Temos, no País, várias gerações que foram crescendo sem acesso a educação e cultura. E, dentre aqueles que têm esse privilégio de acesso, muitos se encastelam, sem ligar para a marginalização e exclusão populacional ao seu redor, julgando-se protegidos do efeito rebote dessa negligência social. Isso tem um limite. Será que estamos chegando a ele? •
Publicado na edição n° 1331 de CartaCapital, em 09 de outubro de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Os pássaros e o fim do mundo’
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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