Alberto Villas

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Jornalista e escritor, edita a newsletter 'O Sol' e está escrevendo o livro 'O ano em que você nasceu'

Opinião

Os pássaros

Passei a fotografar melros e hoje tenho uma coleção enorme dessa fotos, que mudam apenas o cenário, já que são todos iguais, pretos

Foto: Alberto Villas
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Tinha eu pouco mais de quatorze anos de idade quando fui ao Cine Pathé ver o filme Os Pássaros, de Alfred Hitchcock, com Rod Taylor, Tippi Hedren, Jessica Tandy, Suzanne Pleshette e Veronica Cartwright.

Nos anos 1960, cinema de bairro, todo mundo conhecia todo mundo. Não tinha esse negócio de proibir um garoto que amava os Beatles e os Rolling Stones de ver um filme de terror.

Nunca gostei muito de filme de terror e confesso que fechei os olhos várias vezes durante a exibição dos Pássaros, em cenas que eles atacavam ferozmente. Eram melros, que sempre confundi com o pássaro preto, o black bird dos Beatles, com o assum preto de Luiz Gonzaga. Mas acho que era tudo a mesma coisa.

Tinha uma paixão de amor e ódio pelos melros. Quando ouvi os Beatles cantando Blackbird pela primeira vez, passei a mão num Michaelis meio estropiado que ficava na estante do meu pai e, com o meu inglês ruim, fui logo traduzindo a letra:

O melro cantando na calada da noite

Pegue essas asas partidas e aprenda a voar

Durante toda a sua vida

Você só esteve esperando este momento para se erguer

Já o Assum Preto de Gonzagão, costumava ouvir na vitrola da minha casa, naqueles 78 rotações que o meu pai tinha. A letra, nunca me esqueci, era de uma tristeza infinita e me tocava:

Tudo em volta é só beleza

Céu de abril e a mata em flor

Mas assum preto, cego dos zóio

Não vendo a lua, ah, canta de dor

Talvez por ignorância

Ou mardade das pior

Furaro os zóio do assum preto

Pra ele assim, ah, cantar mió

Quando pisei em Londres pela primeira vez, muito me impressionou a quantidade de melros por toda a cidade. No Holland Park, no Regent’s Park, no Victoria Park, eles eram reis. Mansos entre eles, só se estranhavam quando um queria comer as nozes do outro. Nada de Hitchcok.

Passei a fotografar esses melros e hoje tenho uma coleção enorme dessa fotos, que mudam apenas o cenário, já que são todos iguais, pretos.

Lembro-me que fui na Barsa saber mais sobre a vida deles. Fiquei sabendo que o melro é um omnívero, consumidor de insetos, vermes, bagas e drupas. Catam em várias tonalidades, são féis, e gostam de morar e circular sempre nos mesmos lugares. Nada de pular o muro e se aventurar por aí.

Catalogando minhas fotografias, vejo que tenho dezenas de melros nos lindos gramados campos de Londres, ciscando, cochilando, dormindo, voando. Uns maiores, outros menores, mas todos iguais.

Um dia em Praga, na República Tcheca, caminhando rumo a casinha onde morava e escrevia Frans Kafka, topei com um bando de melros no parapeito de um imenso jardim. Um deles lutava contra um saco plástico, tentando destruí-lo, coisa desse mundo moderno. O que me chamou a atenção é que ele não era todo preto, tinha uma cor meio café com leite, tão lindo quanto um preto.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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