César Locatelli

Economista e mestre em economia política. Jornalista independente desde 2015.

Opinião

Os operadores do ‘mercado’ parecem se esquecer da história

Responsabilidade fiscal não pode se dar às custas de fome e desigualdade

O presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Foto: Sergio Lima/AFP
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A gritaria nos meios tradicionais de comunicação, que ouve quase exclusivamente operadores do mercado financeiro, demanda algumas considerações importantes: não há crise cambial no horizonte; as altas e baixas da bolsa impactam praticamente nada na economia real; responsabilidade fiscal não pode se dar às custas de fome e desigualdade; sem o governo assumir-se como motor do crescimento continuaremos patinando.

1. O Brasil tem 326 bilhões de dólares de reservas internacionais. Isso quer dizer que o país tem dólares e moedas de curso internacional em quantidade suficiente para resistir por muito tempo a maus humores de quem quer que seja. O regime de câmbio flutuante implica que o Banco Central não é obrigado a vender dólares. Não há, portanto, risco de crise cambial no horizonte.

Se houver excesso de compradores de dólares e o Banco Central não vender, as reservas serão mantidas no nível atual. Em um processo de alta, com fundamentos reais, que não necessariamente é o caso presente, o preço subirá até chegar a um ponto em que aparecerão vendedores e o preço se equilibrará. Afinal, continua atraente a principal operação especulativa do mercado financeiro: tomar dólares emprestados no exterior pagando, por exemplo, 4,63% ao ano, que é a Libor de 3 meses, vender esses dólares para receber reais e emprestar ao governo brasileiro a 13,75% ao ano com liquidez diária. Quanto mais o dólar subir, mais segura fica a operação especulativa e mais competitivos ficam os produtos de exportação do Brasil. Em outras palavras, podemos ficar calmos que os vendedores aparecerão.

2. O Produto Interno Bruto de 2021 foi de 8,7 trilhões de reais. A média diária das operações compromissadas de um dia (overnight) atingiu R$ 1,9 trilhão, em setembro de 2022. A Bovespa negociou ontem R$ 55 bilhões. Com volume 158 vezes menor que o PIB e 35 vezes menor do que aquele movimentado nas operações compromissadas, as altas e baixas do mercado acionário têm impacto bem pouco relevante para a economia real do país. O uso que os meios de comunicação e os operadores do mercado financeiro fazem das altas e baixas da Bovespa é desproporcional a sua real importância sistêmica.

3. A medida usualmente usada para se avaliar o endividamento de um país é tomar o montante da dívida e dividi-lo pelo PIB. Essa razão, dívida/PIB, pode ser reduzida por dois caminhos: com o corte de gastos e investimentos ou com o crescimento do PIB.

Lula recebeu de Fernando Henrique Cardoso uma dívida líquida em ordem de grandeza, relativamente ao PIB, semelhante a que receberá em janeiro, cerca de 60% do PIB. Durante os governos Lula e Dilma Rousseff, o PIB cresceu solidamente e seus governos fizeram superávits fiscais em praticamente todos os anos que governaram. Assim, a relação dívida / PIB caiu para a casa dos 30% em 2015. Temer e Bolsonaro a levaram de volta para a casa dos 60%.

FHC pegou a dívida em 22,9% do PIB e entregou-a a Lula em 57,4 %. Lula derrubou-a para 37,4%. Dilma levou-a 31,9%, no final de seu primeiro mandato, mas entregou-a a Temer em 38,2%. Temer elevou-a novamente para 52,8% e Bolsonaro para 58,3%, em outubro de 2022. A história, portanto, não explica a gritaria em defesa de um teto de gastos que nunca foi respeitado. Temer e Bolsonaro subiram a relação dívida/PIB em 20 pontos, sob o tal teto.

4. Todo discurso dos períodos Michel Temer e Jair Bolsonaro foi de que as reformas fariam a economia crescer. Não fizeram. O discurso de Lula de que a via do consumo e a via do investimento público farão o serviço de fazer a roda girar deu certo nos seus dois primeiros mandatos. O crescimento do PIB entre 2003 e 2010 foi superior a 37%. Em 2021, com três anos de governo Temer e três anos de governo Bolsonaro, o PIB ainda foi menor do que o de 2014.

Além de tirar o Brasil do mapa da fome e diminuir sensivelmente a desigualdade, a economia cresceu 50,7% entre 2002 e 2014. Mesmo se considerarmos o ano de 2015, quando a crise política, sob a batuta de Eduardo Cunha, impediu que se governasse, o país cresceu 45%, nos 15 anos de governos petistas.

5. Assistindo a fome de mais de 30 milhões de brasileiros, o mercado financeiro, com a ajuda importante dos meios de comunicação empresariais, busca mais brasa para sua sardinha, ou para seu salmão. E para isso é comum seus operadores fazerem de conta que a história não existiu ou a distorcerem.

O neoliberalismo tem aumentado o número de ressentidos e os empurrado para os braços da extrema direita mundo afora. Mas esse argumento ainda não é ouvido por aqui.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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