Alberto Villas

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Jornalista e escritor, edita a newsletter 'O Sol' e está escrevendo o livro 'O ano em que você nasceu'

Opinião

Os músicos de Bremen revisitados na história de um galo e uma gata

Um belo dia, cada um tomou um rumo diferente. Numa encruzilhada, o galo seguiu o seu caminho e a gata, outro

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O galo, cansado de guerra, entregou os pontos. Espora quebrada, sem penas no pescoço, sangrando, resolveu abandonar o barco. O pobre galo vinha sendo perseguido desde 1968, vigiado e censurado. Corria risco de morrer nas mãos dos donos do poder que não se conformavam com o seu canto, às vezes no meio da madrugada.

A gata, mais delicada, mas tão guerreira quanto, sangue árabe, também estava em ponto de pedir arrego. O seu dom era fazer traços com régua e compasso e pouco escrever como o galo poeta, aprendiz de jornalista, sonho de ser escritor de livro publicado.

Um dia eles se encontraram. O galo, mais falador, acabou convencendo a gata em fugir daquela aldeia onde moravam em busca de uma vida melhor, de sonhos ripongas, respirar incenso, quiçá viver em comunidade. Ele, para não acabar virando coq au vin e ela, tamborim.

Na verdade, eram quatro, mas não houve meio de convencer o burro e o cachorro da empreitada. Os dissidentes ficaram na aldeia e um dia foram pegos e sumiram pra nunca mais. Foi então que galo e gata resolveram partir pra vida em dupla.

Numa caixa de sapatos Clark, os dois começaram a juntar moedas e notas de cruzeiros para trocar por francos franceses e, um dia, fugirem juntos pra bem longe da aldeia onde sempre moraram.

A caixa de sapatos foi ficando pesada a cada dia que passava e quando já estava chegando a dois quilos, eles resolveram ir na agência do Banco da Lavoura no centro da aldeia e trocar tudo por francos franceses.

O galo não sabia tocar instrumento algum, nada, nem arranhar um violão pra cantar A Estrada e o Violeiro ou Pra não dizer que não falei de flores. Voz, nem pensar, era um eterno desafinado, mas no peito esquerdo dele batia um coração. A gata cantava razoavelmente bem, mas não passava por sua cabeça ser cantora profissional, ganhar dinheiro com isso, ser uma Edith Piaf. Montar uma banda de rock and roll, então, fora de cogitação. Só queria saber de sonhar, desenhar e pintar.

Corta.

A aventura começou no aeroporto que ainda se chamava Galeão, na outrora Cidade Maravilhosa, quando embarcaram num avião da Varig. Doze horas depois, olhando por aquela janelinha oval, viram uma luzinha lá embaixo, depois outra e mais outra, centenas, milhares.

Um comentou com o outro que se ali tinha iluminação, era uma cidade, quem sabe uma cidade luz. E aí desceram. A primeira surpresa foi o frio que penetrava na pele, gelava o nariz, endurecia os dedos, e também os primeiros flocos de neve que caiam como algodão.

Quando puseram os pés na cidade luz já era dia e não se via mais iluminação artificial. Perambularam pelas ruas até encontrar um quartinho para se instalar. Comeram croissant au beurre, beberam Orangina, mascaram Carambar, experimentaram pela primeira uma deliciosa salade au céleri, isso nos primeiros dias ali.

Instalados num quarto quatro por quatro, voltaram a pensar na banda de rock and roll, mas logo tiraram a ideia da cabeça. Não tinham o talento de um Johnny Rotten ou de um Sid Vicious. Talvez fosse gostoso ser punk, mas era muito difícil. Afinal, cantariam em que língua, já que o francês e o inglês eram bem ruins?

O galo começou a fazer bico numa cozinha descascando batatas e ralando maçãs para as tortinhas. Ela desenhava nas horas vagas, mas foi cuidar de um menino lindo, mesmo mãe não sendo ainda. Aprendeu o ofício rapidinho e a língua veio junto.

Eles viveram ali naquela cidade durante muitos e muitos anos. Chegaram a comer o pão que o diabo amassou, mas também comeram um boeuf bourguignon no dia do aniversário dela e, no dia seguinte, no aniversário dele, um cuscuz marroquino com carne de carneiro, merguez, harrissa e tudo mais.

A ideia de abandonar a aldeia onde nasceram e não mais receber nas costas as cassetadas dos gorilas como eram chamados, acabou dando certo. Um dia, ele começou a escrever como sempre sonhara e ela a desenhar, inclusive uma história para a J’Aime Lire que nunca foi publicada.

Aquela ideia da banda de rock and roll não passou de um sonho. Resultou numa coleção invejável de discos dos Sex Pistols, dos Damned, do Clash, dos Dead Kennedy e alguns importados do Cólera, do Olho Seco e dos Garotos Podres.

Um belo dia, cada um tomou um rumo diferente. Numa encruzilhada, o galo seguiu o seu caminho e a gata, outro. Ele nunca mais teve notícias dela nem ela teve noticias dele. E da união restou dois seres humanos extraordinários e, dependurado na parede, os quatro músicos de Bremen, uma aldeia que fica a 397,5 quilômetros distante de Berlim.

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