Arthur Chioro

Ex-ministro da Saúde

Opinião

Não cabe a um ministro decretar o fim da pandemia

Os ministros da Saúde de Bolsonaro são próceres em dizer absurdos. O mais recente deles foi o anúncio da mudança do status da pandemia

O ministro da Saúde, Marcelo Queiroga. Foto: Isac Nóbrega/PR
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Quem usa as diferentes mídias para emitir opiniões está sujeito a cometer equívocos, produzindo informações não condizentes com a realidade. Nestes casos, ­espera-se a pronta reparação, corrigindo aquilo que não se sustenta. Isto é especialmente importante quando se trata de autoridades públicas, cujas opiniões podem influenciar, ou mesmo definir, o que acontecerá com o País ou com a vida de milhões de pessoas.

A primeira coisa que um gestor da saúde aprende é que seus pronunciamentos exigem responsabilidade, cautela e devem ser pautados por evidências científicas, ética, prudência e bom senso. Fui secretário municipal de Saúde por nove anos e dediquei outros cinco ao Ministério da Saúde – dois deles como ministro. Senti na pele os riscos e a importância de produzir mensagens seguras, prudentes e éticas. Afinal, a vida de ministro da Saúde no Brasil não é nada fácil.

Na história recente, cada responsável pela pasta, a despeito dos problemas e desafios cotidianos, teve pelo menos uma epidemia ou catástrofe sanitária para chamar de sua. Adib Jatene enfrentou a reemergência da cólera. José Serra lidou com o período mais crítico da epidemia de Aids. Humberto Costa com a dengue e a crise dos hospitais no Rio de Janeiro. José Temporão liderou o enfrentamento à epidemia de Influenza H1N1. Alexandre Padilha colocou toda a estrutura do ministério para apoiar as vítimas da catástrofe na Serra Fluminense e do incêndio na boate Kiss.

Na minha gestão, preparamos o País para enfrentar a epidemia de Ebola, que acabou não chegando ao nosso continente. Marcelo Castro teve de lidar com a epidemia de Zyka e as crianças com microcefalia. Todos contamos, de alguma forma, com o apoio dos nossos presidentes e da estrutura do governo federal.

Trágico para o nosso destino foi o fato de a Covid-19, o maior desafio sanitário de todos os tempos, eclodir justamente na gestão de um presidente negacionista, que se transformou em um inimigo mais implacável do que o próprio Coronavírus.

Para dar guarida às absurdas teses por ele defendidas, a estrutura e a própria capacidade de coordenação do Ministério da Saúde foram destruídas. A articulação interfederativa, necessária para integrar as ações efetuadas por municípios, estados e União, foi substituída por um federalismo de confrontação.

Os sucessivos ministros da saúde de Bolsonaro têm sido próceres em produzir manifestações estarrecedoras. Não me refiro apenas ao general Pazuello, o mais despreparado ocupante da pasta desde a sua criação, em 1953. Marcelo Queiroga, embora seja médico, afirmou, por exemplo, que a vacina contra Covid-19 teria produzido mais de 4 mil óbitos no País. Sua pérola mais recente foi anunciar o rebaixamento do status da pandemia para o de endemia. Trata-se de um profundo e proposital equívoco.

Conceitualmente, epidemia é a ocorrência repentina, brusca e não habitual de um número muito grande de casos de uma área geográfica delimitada. Pandemia é quando a ocorrência não se limita a uma área geográfica, expandindo-se por países e continentes.

Não cabe a um ministro decretar o fim da pandemia. Ainda mais quando apenas 13,6% das pessoas que vivem em países de baixa renda receberam ao menos uma dose de vacina. Poderiam contribuir para o seu fim se fizessem algo pela saúde global ou pelos mais de 60 milhões de brasileiros que não tomaram a vacina ou estão com esquemas vacinais incompletos. Nesse grupo há não só crianças, mas idosos. Um em cada quatro idosos não tomou vacina adequadamente. Mas o governo continua se omitindo.

Endemia, por sua vez, é a ocorrência de uma determinada doença que, no decorrer de um largo período histórico, acomete sistematicamente grupos em determinados territórios, mantendo um número de casos novos constante, com variações sazonais. Algumas doenças, como a tuberculose, são endêmicas, e isso não é uma vitória. Mesmo que esse possa ser o destino da Covid, é inaceitável a posição do governo brasileiro.

Um grande sanitarista, Gilson ­Carvalho, costumava dizer que os gestores da saúde sofrem de “portariofilia”, uma terrível doença que os impele a produzir incontáveis portarias e atos oficiais, ainda que desnecessários. Neste caso, terminar a pandemia por decreto é admitir que ela nunca foi levada a sério.

A intenção é apenas tentar tirá-la da pauta política eleitoral. Vale dizer, todavia, que em memória das mais de 650 mil vítimas de Covid-19 e dos milhões de brasileiros que viverão com sequelas da doença pelo resto da vida, isso não acontecerá. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1199 DE CARTACAPITAL, EM 16 DE MARÇO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Despautérios sem-fim”

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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