Camilo Aggio

Professor e pesquisador da Universidade Federal de Minas Gerais, PhD em Comunicação e Cultura Contemporâneas

Opinião

Os games e o populismo censório e anticientífico de Lula

Para esse tipo de discurso, o público nada mais é do que um enorme aglomerado de indivíduos suscetíveis a influências e manipulações

O presidente Lula (PT), em reunião com chefes dos Três Poderes, governadores e ministros, para debater a segurança no ambiente escolar. Foto: Joédson Alves/ Agência Brasil
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Não é novidade, mas tem contornos bastante particulares de gravidade. Lula, o atual presidente do Brasil, sugeriu, em uma reunião com o objetivo de discutir possíveis mecanismos de combate a ataques violentos em escolas brasileiras, que o consumo de jogos eletrônicos teria uma relação de causalidade com esses atentados brutais.

Disse Lula, dedicando um valioso tempo à tese: “[…] Não tem jogo, não tem game falando de amor, não tem game falando de educação, é game ensinando a molecada a matar”.

Em primeiro lugar, não é verdade que o universo complexo e fantástico dos jogos eletrônicos atuais se restrinja a conteúdos com violência.

Em segundo, a premissa aplicada é uma velha conhecida de quem dedica ou já dedicou a vida labutando no campo de pesquisa das ciências da comunicação. Assim mais ou menos se define: os destinatários de mensagens e conteúdos oriundos da informação, da cultura e do entretenimento de massa são representados por um gigantesco conjunto amorfo de indivíduos em quem os produtos midiáticos incutam suas influências nocivas.

Em outras palavras, para esse tipo de discurso, o público nada mais é do que um enorme aglomerado de indivíduos vulneráveis e suscetíveis às influências e manipulações que, supostamente, constituem os objetivos de quem habita e faz girar as engrenagens das masmorras malignas das instâncias de produção e de emissão desses conteúdos de comunicação de massa. Mas, claro, não podemos prosseguir sem sublinhar uma questão-chave: essa crítica nunca comporta um crítica sobre si. Trata-se, sempre, do outro.

O vulnerável é sempre o outro. E, como demonstram os estudos do fenômeno do “efeito de terceira-pessoa”, estamos a falar de um fenômeno social e político generalizado e quase universal.

Lula não está sozinho nesta, pelo contrário. São incontáveis os grupos que compartilham da mesmíssima premissa. O reacionarismo bolsonarista costuma alardear como a suposta exposição às representações midiáticas da homossexualidade induz crianças, jovens, adolescentes e adultos à homossexualidade; alas do feminismo defendem que conteúdos pornográficos – sem quaisquer distinções de abordagens, formas e conteúdos – induzem a comportamentos violentos contra as mulheres; não faltam os que militam contra conteúdos midiáticos violentos com base na premissa de que as pessoas expostas a eles não sabem distinguir uma mensagem sobre violência da violência em si.

Já estamos a anos-luz do que alguns manuais de teorias da comunicação denominam de “teoria da agulha hipodérmica”, ou seja, aquela concepção pouco interessada na investigação do que os indivíduos fazem com a comunicação e que apostava nos efeitos dos media com base numa lógica pavloviana de estímulo-resposta.

O próprio campo dos media effects já vem tocando pesquisas e mais pesquisas há décadas para aferir, experimental e empiricamente, como conteúdos mediáticos sobre violência podem induzir à violência. Tudo o que temos de mais sofisticado em matéria de evidências é que não há, definitivamente, uma relação direta e causal. Nem mesmo entre crianças (aquelas criaturas que adoramos subestimar em suas inteligências) que demonstram saber distinguir a realidade de um conteúdo mediático da sua realidade social.

O que fez Lula nesse episódio nada mais foi do que optar pelo desrespeito à ciência em favor do culto à ignorância. A escolha por jogar para a plateia usando falsas constatações ao invés de escolher um amplo acúmulo de evidências científicas no campo da Comunicação. Nesse ponto, se uniu ao populismo censório tão fartamente colocado em prática pelo bolsonarismo ao menos ao longo dos últimos quatro anos.

Bem, mas a ciência bem feita, aquela do que Ian Shapiro chama de Iluminismo maduro, a da falseabilidade da epistemologia popperiana, é e parece que sempre será periférica. Marginal. Maisntream mesmo são as religiões, os dogmas, as superstições, as opiniões, as tradições, a tal da “sabedoria popular”.

O que se viu ao longo da pandemia com hidroxicloroquinas e ivermectinas não é uma coincidência. O que se vê neste episódio é um negacionismo científico com premissas oriundas da mesma origem e aparentemente acionado para simplificar um problema sociopsicológico complexo e oferecer falsas soluções num momento em que precisamos de inteligência. Não apenas política, mas, principalmente, científica.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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