Opinião

Os doutores omissos do Brasil

Os conselhos de Medicina, tão aguerridos no combate ao programa Mais Médicos, silenciam diante da tragédia da Covid-19

Os doutores omissos do Brasil
Os doutores omissos do Brasil
Em Cuba, mais de 28.000 estudantes de medicina se encarregam de visitar de porta em porta todos os habitantes da ilha para prevenir ou detectar casos de coronavírus. Foto: Adalberto Roque/AFP
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As cenas em Manaus são dignas do mais obscuro recanto das trevas da Idade Média. Pacientes morrem sufocados, abandonados à própria sorte, nos corredores, como morriam nas ruas as vítimas da peste. Contados às dezenas, enterrados em fileiras não muito diferentes de uma vala comum. Falta oxigênio, a mais básica e vital substância da vida.

O mundo se horroriza, compatriotas se enternecem, mas qual a reação do Conselho Federal de Medicina? Uma nota acaciana sobre a urgência da vacina. “A imunização de grande parcela da população é fundamental para que haja redução significativa da circulação do vírus”, ilumina o texto. Sábios.

Se a associação dos profissionais que lida diretamente com a tragédia é incapaz de se comover e se indignar com a sequência de erros, omissões e crimes cometidos repetida e sistematicamente pelas autoridades federais, o que esperar do resto do País?

Hoje poodles mansos, os conselhos de medicina se portaram como pitbulls não faz muito tempo.

Quando nasceu o Programa Mais Médicos – e a ideia de importar doutores de Cuba para atuar em cidades rejeitadas por grande parte dos formados no País -, os conselheiros e seus representados foram à luta. Organizaram a tropa, moveram uma enorme campanha na mídia, saíram em passeatas, alguns com nariz de palhaço, e receberam os colegas estrangeiros nos aeroportos a xingamentos e cusparadas. Orgulho verde-amarelo. Nossa bandeira nunca será vermelha. Pátria amada, Brasil. O juramento de Hipócrates, nesta porção do planeta abaixo da linha da cintura do Equador, virou o juramento dos hipócritas: mais importante do que salvar vidas é defender interesses corporativos.

 

Não se trata apenas de covardia. O silêncio dos conselhos é um sinal verde para a proliferação de médicos negacionistas – a quantidade é assustadora –, minions de jaleco: defendem a cloroquina, minimizam a gravidade da pandemia, aconselham os pacientes a não tomar a vacina. São estrelas nas redes sociais e no Youtube, se reproduzem como vírus.

No resto do mundo, profissionais da saúde irresponsáveis são punidos exemplarmente. Aqui, ganham aplausos, curtidas e seguidores. Pelo amor, chamem os cubanos.

Parênteses: não se trata aqui dos milhares de médicos e enfermeiros na linha de frente do combate da pandemia. Vários doaram a vida na batalha. Outros ficarão marcados pelas sequelas das derrotas e das horas de atendimento. Nenhum desistiu por vontade própria. Estes merecem o mais profundo respeito.

Ainda havia juízes em Berlim, constatou o moleiro de Sans-Souci. Ainda há médicos no Brasil?

Apesar dos burocratas dos conselhos, felizmente sim. Indignados com a omissão, ex-presidente e ex-conselheiros federais lançaram na quarta-feira 14 um manifesto. Onde está o CFM? Onde está a entidade máxima da categoria médica?, perguntam.

“Até agora sabemos o endereço, mas não sabemos a sua posição frente a essa tragédia sanitária e humana que assola o mundo e em especial o nosso País. Nós, médicos e médicas, olhamos em sua direção e não vemos nada. Somente o silêncio. Parece que tudo está em paz. Paz essa que sequer existe hoje nos cemitérios nacionais, onde reina absoluto o choro distante de mais de 200 mil famílias enlutadas”.

Entre os ex-presidentes, assinam a carta Gabriel Wolf Oselka, Francisco Álvaro Barbosa Costa, Ivan de Araújo Moura Fé, Waldir Paiva Mesquita e Edson de Oliveira Andrade. Continuam à espera de uma resposta.

Está quase tudo perdido. Mas nem tudo.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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