Paulo Nogueira Batista Jr.

paulonogueira@cartacapital.com.br

Economista. Foi vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, estabelecido pelos BRICS em Xangai, e diretor-executivo no FMI pelo Brasil e mais dez países

Opinião

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Os desafios da esquerda

Parte dela também se tornou tradicional e elitista, perdeu contato com a população

Os desafios da esquerda
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Schwab quer uma globalização mais inclusiva
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Em vários países do Ocidente e do Sul Global, inclusive no Brasil, a esquerda defronta-se nas décadas recentes com desafios talvez sem precedentes – e não está se saindo bem, de forma geral. Com o passar do tempo, os desafios avolumam-se e a esquerda debate-se sem sucesso contra eles. O Brasil, com Lula, até constitui uma exceção, mas apenas parcial.

Estou me referindo, na verdade, à centro-esquerda, à esquerda moderada. A extrema-esquerda não desempenha papel relevante. Em contraste, no campo da direita, os extremistas, apesar de alguns reveses importantes (notadamente as derrotas eleitorais de Donald Trump e Jair Bolsonaro), continuam fortes, ameaçando os partidos tradicionais de centro-direita e centro-esquerda.

O pano de fundo desses movimentos políticos é a crise da globalização, que gerou um mal-estar generalizado. Nos últimos 30 ou 40 anos, nos EUA e na Europa, ocorreu uma dissociação crescente entre as elites e o resto da população. A renda e a riqueza concentraram-se nas mãos de poucos, os ricos ficaram mais ricos, ao passo que o grosso da população viu sua renda estagnar ou retroceder. A confiança no sistema político desabou. Espalhou-se a percepção de que não há democracia, mas plutocracia – o governo dos endinheirados. Pior, ficou patente que o que prevalece é uma caquistocracia – o governo dos piores. A baixa qualidade da maioria dos líderes políticos ocidentais está aí, à vista de todos.

Esse declínio das lideranças do Ocidente reflete algo maior: o declínio do ­establishment dessas nações, crescentemente dominado pelo rentismo e o capitalismo predatório. Especulação financeira, privatizações destrutivas, fusões e aquisições, manobras de mercado de todo tipo substituem a produção e a geração de empregos de qualidade. A decadência parece bem evidente. Versões anteriores do e­­stablishment dos EUA teriam permitido que o eleitorado ficasse reduzido a escolher em 2024, como tudo indica, entre um presidente senil e um bufão irresponsável?

Não por acaso, a China, que nunca seguiu a globalização neoliberal, tornou-se “a fábrica do mundo” às expensas das indústrias do Ocidente. O Brasil, infelizmente, também caiu na armadilha da globalização e ainda não conseguiu dela escapar. Era inteiramente previsível. As elites locais, em geral servis e medíocres, mimetizam as elites estadunidenses, trazendo para cá o que há de pior.

No plano político-partidário, quem foi prejudicado e quem foi beneficiado pela crise da globalização neoliberal? Entre os prejudicados destacam-se, merecidamente, os partidos tradicionais de direita, identificados com a defesa do modelo concentrador. Note-se, entretanto, que o prejuízo recai não só sobre eles, como também sobre os da esquerda moderada – a social-democracia, os socialistas e outros semelhantes. Previsível: afinal, a centro-esquerda foi sócia do modelo excludente. Em muitos países, governou em coalizões com a direita tradicional. Quando chegou ao poder como força hegemônica, pouco ou nada fez para mudar o rumo da economia e da sociedade. Assim, passaram a ser vistos, juntamente com a centro-direita, como parte de um mesmo “sistema”.

Contra esse “sistema”, a extrema-direita se insurge, mesmo que muitas vezes apenas da boca para fora. Comandada por líderes carismáticos e espalhafatosos, como Trump, Bolsonaro e Javier Milei, conseguiu vencer diversas eleições importantes. Despreparada e primitiva, contudo, a extrema-direita não governa de modo eficaz e promove mais confusão do que reformas. Mantém ou aprofunda a orientação conservadora em economia, disfarçando essa concessão com atitudes extremadas na pauta de costumes. Não passou no teste de fogo da pandemia da Covid-19, o que contribuiu de modo importante, como se sabe, para a não reeleição de Trump e Bolsonaro. Recuperou-se, contudo, dessas derrotas, como se nota pela vitória de Milei, o prestígio de Trump e Bolsonaro, ­sobretudo do primeiro, e a ascensão de radicais de direita em alguns países da Europa.

O que aconteceu com a centro-esquerda talvez seja relevante para o governo Lula e os partidos que o apoiam. Parece intrigante, à primeira vista, que a centro-esquerda dos países desenvolvidos não tenha conseguido capitalizar para si a crise da globalização. Parte da explicação já foi mencionada acima: o condomínio de poder formado com a direita tradicional. Mas fato é que a centro-esquerda também se tornou tradicional e elitista, acomodou-se, perdeu contato com a população e mostra não compreender os seus problemas reais. Corre o risco de ­definhar por não entender as mudanças em curso. Como na mitologia, a esfinge de Tebas ­adverte: “Decifra-me ou te devoro”.

Como reagirá a centro-esquerda a esses problemas? Continuará no rumo atual ou tentará conectar-se com as novas realidades e as preocupações da maioria? Se ela optar por apegar-se às suas tradições, só nos resta desejar-lhe boa sorte. •

Publicado na edição n° 1299 de CartaCapital, em 28 de fevereiro de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Os desafios da esquerda’

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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