Alexandre Padilha

Médico, professor universitário e deputado federal (PT-SP). Foi ministro da Coordenação Política de Lula, ministro da Saúde de Dilma Rousseff e secretário de Saúde na gestão Fernando Haddad na cidade de São Paulo.

Opinião

Os conselhos de medicina não se portaram à altura da tragédia da pandemia no Brasil

As 600 mil mortes assombram seus diretores?

Manifestantes protestam após Brasil ultrapassar a marca de 100 mil mortos na pandemia. Foto: Evaristo Sá/AFP
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Em 2013, enquanto mais de 60 milhões de brasileiros e milhares de municípios passaram a contar com atendimento médico de qualidade e puderam ter um dos seus direitos mais básicos assegurados, o Conselho Federal de Medicina e os conselhos regionais ingressaram com ações judiciais que buscavam interromper o Mais Médicos, programa que garantiu a expansão do cuidado à saúde nas regiões mais vulneráveis do País. Em uma dessas ações, o CFM afirmou: “A ação não é contra a presença de médicos estrangeiros em território brasileiro, mas pelo cumprimento da exigência legal para que o médico demonstre efetivamente sua capacidade técnica para o exercício”. 

 

Ao longo do mandato da presidenta Dilma Rousseff, o programa consolidou-se e atingiu a marca de 18 mil profissionais contratados, que permitiram a cobertura de atendimento a mais de 63 milhões de brasileiros, sendo avaliado positivamente pela sociedade e aprovado pelos órgãos de controle e pelo Poder Judiciário.

Contudo, passados oito anos desde a criação e implantação do programa, vimos o seu desmonte bem antes da posse de Jair Bolsonaro. Ainda em 2018, o discurso de ódio e terraplanismo diplomático e sanitário de Bolsonaro, ainda na transição dos governos, inviabilizou a participação de médicos estrangeiros, em especial os integrantes da cooperação Brasil/Cuba, por intermédio da Organização Pan-Americana da Saúde, o que reduziu significativamente o programa.

O presidente eleito graças à disseminação de notícias falsas associou-se ao seu ministro da Saúde no ímpeto de substituir o Mais Médicos e criar mais uma fake news: lançaram, com apoio do atual CFM, um programa que prometeu levar mais médicos pelo Brasil, mas que em mais de dois anos de sua apresentação nunca colocou nenhum novo profissional no nosso Sistema Único de Saúde. Não à toa, dados do próprio IBGE mostram que, em 2019, apenas 37% das famílias brasileiras afirmam ter recebido visita de equipes de Saúde da Família, ante cerca de 50% em 2013. O “Médicos pelo Brasil”, inventado para substituir o Mais Médicos, contou com um vídeo de apoio do presidente do CFM anunciando outra fake news: uma carreira de Estado para médicos que nunca existiu.

Durante a pandemia, o atual CFM omitiu-se em relação ao presidente da República e ministros da Saúde, que se negaram a contratar vacinas e viraram as costas para a falta de equipamentos de proteção aos profissionais de saúde. Uma lei de minha autoria, em parceria com outros parlamentares, garante uma indenização financeira aos milhares de profissionais de saúde afetados pela pandemia. Caso tenham morrido, a indenização será repassada aos familiares. Essa lei chegou a ser vetada por Bolsonaro, derrubamos o veto, mas o governo federal se nega a implementá-la. Ela é um benefício para milhares de médicos e seus dependentes. Até agora, não vimos nenhum vídeo, pronunciamento ou ação do CFM a respeito. Ao contrário: o atual conselho editou uma resolução, contestada pelas sociedades de especialidades brasileiras e desmontada pelas evidências científicas, a respeito do uso de medicamentos sem eficácia, utilizada para legitimar a prática de charlatanismo por médicos e médicas em webinários, lives, atendimentos online de prescrição, em muitos casos de médicos que viram seus consultórios esvaziados por conta da pandemia.

O CFM e os CRMs nem sequer organizaram, juntamente com o Ministério da Saúde, um processo de fiscalização da prática profissional no ato de prescrição desses medicamentos, sem dar orientação, que a própria resolução estabelece, quanto aos riscos, com pedidos de exames para avaliar eventos adversos, termos de consentimento lidos e assinados. Nada. 

Negligentes diante de uma farta distribuição de kits Covid, alguns em caixinhas e saquinhos, com os logotipos de prefeituras e planos de saúde. Quietos diante de um presidente que se posta como médico, diariamente “prescrevendo” e mostrando mostruários de medicamentos à população.  

Em abril de 2020, denunciamos o “estudo” absurdo divulgado pela Prevent Senior sobre o uso de cloroquina. Em ação parlamentar apresentada, descobrimos que o experimento não tinha aprovação da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa, fato amplamente divulgado. O Ministério Público de São Paulo passou a investigar denúncias feitas por médicos desse plano coagidos a prescrever medicamentos ineficazes e a suspender o isolamento de pacientes, colocando em risco todo o hospital e omitindo diagnósticos. 

Nenhuma ação do atual CFM. Aquela caravana a hospitais públicos do SUS realizada em 2013 no contexto do Mais Médicos para atacar o sistema e justificar o argumento de que o Brasil não precisava de mais profissionais não se viu sair da garagem durante a pandemia, quando médicos, usuários e familiares sofriam com todas as dificuldades. Nem mesmo uma visita aos hospitais da Prevent Senior, para checar se aquilo que era denunciado por médicos e cuja suspensão de estudo orientada pela Conep fazia sentido. Alguns dizem que faltou combustível ao CFM. 

Espera-se, desde abril de 2020, que a Agência Nacional de Saúde abra procedimentos de investigação e o CFM apure eticamente os divulgadores de estudo e assediadores de profissionais médicos. Até agora nada. Foi preciso uma CPI no Senado para a ANS e o governo se mexerem. O atual CFM, nem assim. Por isso é importante saudar a ação civil pública da Defensoria Pública da União, que busca suspender o parecer 4º, de 2020, que construiu os critérios de utilização dos medicamentos sem eficácia, e obter o pagamento de 60 milhões de reais por danos morais coletivos.

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1178 DE CARTACAPITAL, EM 7 DE OUTUBRO DE 2021.

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