

Opinião
Os canhões de agosto*
O crédito à manufatura volta a impulsionar os EUA. Já no Brasil…


Nos primeiros dias de agosto, o Congresso americano disparou seus canhões: aprovou o Chips and Science Act. A decisão recebeu escassas referências e ralos comentários na mídia brasileira.
Escarafunchei jornais, sites e noticiários de televisão, além dos Instagrans e Twitters. Deparei-me com espaços de informação onde, diria Sartre, o Nada sufoca o Ser. O vira-latismo nativo descuidou-se de cultivar o complexo que Nelson Rodrigues lhe atribui. Diante do descuido, certamente momentâneo, enveredei pela mídia de alhures.
Nas veredas não tropicais, deparei-me com notas, notícias e análises, algumas críticas e muitos aplausos de variegada autoria e concepção. Entre tantas e tais, deparei-me com um manifesto de apoio assinado por 126 economistas americanos de distintas correntes de pensamento.
Os agraciados com o Nobel de Economia Joseph Stiglitz e Michael Spence estão entre os signatários. Em artigos no Project Syndicate, os dois nobelizados afirmam sua aprovação entusiasmada aos projetos do governo Biden. Michael Spence celebra o reaprendizado de Tio Sam. O título de seu artigo, “Faça a América Investir Novamente”, explicita sua aprovação. Ele diz que, desde o projeto de lei de infraestrutura de 1,2 trilhão de dólares, de novembro passado, que prevê melhorias nas estradas, pontes e banda larga, até o recém-promulgado Chips and Science Act, que destinará mais de 52 bilhões de dólares para impulsionar a indústria americana de semicondutores, os incentivos ao investimento e ao avanço tecnológico estão na ordem do dia nos Estados Unidos.
A esses propósitos juntou-se o Inflation Reduction Act (IRA). Essa lei determina a cobrança de um imposto de 15% sobre os lucros das grandes empresas, além da taxação de 1% nas operações de recompra das próprias ações, vício que machuca a inclinação das empresas ao investimento e premia o jogo da acumulação financeira-rentista. As estimativas prometem uma geração de receita tributária na casa dos 300 bilhões de dólares ao longo dos próximos anos.
Stiglitz reconhece a importância dessa alteração no regime fiscal. “Há um debate sobre as causas da inflação atual, mas, independentemente de qual lado se toma, este projeto de lei representa um passo à frente. Para aqueles preocupados com a demanda excessiva, há mais de 300 bilhões de dólares em redução do déficit. E do lado da oferta o projeto de lei mobilizaria 369 bilhões em investimentos em segurança energética e descarbonização. Isso ajudará a reduzir o custo da energia – um dos principais motores do crescimento atual dos preços – e a colocar a América de volta aos trilhos para reduzir suas emissões de dióxido de carbono.”
Entre os benefícios sociais, o IRA atribui ao Medicare a incumbência de negociar diretamente o preço dos medicamentos prescritos aos pacientes. Diz o documento do Senado: “Atualmente, nosso sistema de preços de medicamentos funciona para corporações e intermediários, não para pacientes. A nova política de negociação garantirá que os pacientes com Medicare obtenham o melhor acordo possível em medicamentos de alto preço e paguem esses medicamentos com base no preço negociado pelo Medicare.”
No país dos vira-latas, essa medida seria recebida por muitos de seus liberais aos latidos de “intervenção!!!, intervenção!!!” Na visão de muitos analistas, a lógica do Chips Act and Science valerá para outras indústrias críticas, como equipamentos de comunicação, minerais de terras raras e biofarmacêuticos. Como diz bem o escritor republicano Oren Cass, no Financial Times: “O interesse conservador em reconstruir a base industrial americana pode finalmente ultrapassar o fundamentalismo do livre-mercado que até há pouco dominou a centro-direita”.
A legislação econômica recém-editada poderia suscitar a perquirição de episódios semelhantes na história dos Estados Unidos. Talvez seja recomendável remontar às origens do pensamento industrialista nas terras de Tio Sam. Retorno ao Report on the Subject of Manufactures, de Alexander Hamilton, escrito nos idos de 1795.
“Não pode escapar à nossa observação que o crescimento da população e a melhora econômica dos Estados Unidos asseguram um aumento contínuo da demanda doméstica pelos tecidos que não produzimos. Mas, embora existam circunstâncias suficientemente fortes para autorizar um considerável grau de dependência da ajuda do capital estrangeiro para a obtenção dos produtos da manufatura, é satisfatório ter boas razões de garantia, de que existem recursos internos próprios adequados a ele. Acontece que existe uma espécie de Capital realmente existente dentro dos Estados Unidos, o que alivia toda a inquietude quanto à falta de Capital: trata-se da dívida financiada”.
Hamilton recomendou o canhão do crédito para o avanço da manufatura. •
*Homenagem a Barbara Tuchman.
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1222 DE CARTACAPITAL, EM 24 DE AGOSTO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Os canhões de agosto*”
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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