Letícia Cesarino

Antropóloga, professora e pesquisadora na Universidade Federal de Santa Catarina. Autora de 'O Mundo do Avesso: Verdade e Política na Era Digital'

Opinião

Os candidatos e seus corpos digitais

Hoje, é difícil avaliar a performance de um candidato apenas com base no contexto da interação em debates ou entrevistas

Lula e Bolsonaro se confrontaram em debate na Band. Foto: Reprodução
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Uma das mudanças provocadas pela intervenção cada vez maior das mídias digitais na política foi a bifurcação das campanhas eleitorais em duas camadas. De um lado, há a pessoa física dos candidatos e sua inserção em meios tradicionais: partidos, jornais, televisão e comícios. Do outro, há as novas formas digitalmente mediadas que os transforma em um corpo virtual formado por usuários, sites e aplicativos, em camadas mais ou menos visíveis da internet.

Isso ficou especialmente evidente em 2018, quando, após a facada, o corpo físico candidato Jair Bolsonaro foi substituído por um corpo caleidoscópico de seguidores e influenciadores que passaram a fazer a campanha no seu lugar: o que chamei, na época, de corpo digital do rei. 

Até recentemente, os candidatos a presidente do PT contavam com um corpo digital relativamente convencional, centrado em blogs, sites e em alguns poucos canais e perfis autenticados em plataformas de vídeo e mídias sociais. Neste ano, começaram a aparecer algumas novidades. As campanhas (oficial e orgânica) do ex-presidente Lula passaram a incorporar táticas melhor adaptadas ao confronto com a direita bolsonarista nas redes – sem, contudo, se igualar a ela no grau de agressividade, conspiracionismo e descrédito às instituições da democracia representativa.

É preciso levar em conta se, e como, trechos desses programas são recortados e editados para compartilhamento em aplicativos de mensagens e redes sociais

Em maio, quando a chapa Lula-Alckmin foi oficializada, analisei a semiótica do vídeo apresentado no evento de lançamento. Chamada de “Dois Lados”, a peça trazia uma técnica de design muito comum nos públicos bolsonaristas em 2018, que chamei de mímese inversa. Ela consiste em produzir um campo binário onde o campo do inimigo aparece com a mesma forma, porém com conteúdo invertido. Aos valores de agressividade e guerra, se contrapôs valores de solidariedade e compartilhamento de um mundo comum. Outras peças inteligentes da campanha oficial traziam, por exemplo, caleidoscópios de pessoas de várias demografias, com variações etárias, raciais, de gênero e classe, alinhando-se em torno de uma cadeia de significados comuns.

Mais recentemente, a entrada do deputado federal André Janones nas trincheiras da guerrilha digital do lado do ex-presidente Lula chamou bastante atenção nas redes. Comentei na última coluna como, desde a época da pandemia, ele ganhou popularidade com táticas básicas de eficácia em ambientes digitais, como mostrar bastidores, trazer informações e eventos em tempo real, e oferecer conselhos práticos ao cidadão comum. Como outros influenciadores fizeram com o atual presidente, Janones tem se interposto entre o campo de batalha digital e o ex-presidente Lula, agitando segmentos de rede, atraindo para si a agência algorítmica e absorvendo muitos dos ataques lançados pelos influenciadores da direita bolsonarista.

Finalmente, com o início oficial do período eleitoral e o programa gratuito na tevê e rádio, essas mídias convencionais passaram a compor o repertório dos corpos digitais dos candidatos. Hoje, é difícil avaliar a performance de um candidato apenas com base no contexto da interação em debates ou entrevistas. É preciso levar em conta se, e como, trechos desses programas são recortados e editados para consumo em aplicativos de mensagens e redes sociais. É assim que a maioria da população irá receber esse conteúdo, que poderá continuar reverberando para além do evento original.

Da entrevista ao Jornal Nacional, bolsonaristas recortaram o momento em que Lula afirmou que o agro é fascista, distorcendo o enunciado para fazer parecer que ele teria generalizado para o todo o setor.

Do debate na Band, apoiadores do ex-presidente pinçaram o momento em que ele confrontou (de forma bem sucedida) a candidata Soraya Thronicke, ao evocar o ponto de vista de trabalhadores sobre seu governo. Preferiram não compartilhar outros momentos do debate, em que o candidato não teve, no geral, uma performance de destaque. Assim, pode ser que Lula não tenha oferecido tantos momentos épicos, mas pelo menos deu pouca margem para distorção de suas falas. O que, na campanha em duas camadas, não parece ser um resultado de todo ruim.  

 

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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