Luiz Gonzaga Belluzzo

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Economista e professor, consultor editorial de CartaCapital.

Opinião

Os bolsonaristas declaram guerra ao Brasil, com a anuência dos militares da reserva

‘É a forma que assumem divergências sociais quando regras da convivência pacificada pelo Estado são massacradas pelo retorno à barbárie’

O presidente Jair Bolsonaro. Foto: AFP
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A defesa que Jair Bolsonaro fez do armamentismo na fatídica reunião ministerial de 22 de abril de 2020 recebeu o apoio de um  manifesto dos oficiais da reserva. Em suas invectivas, os fardados de pijama endossaram a eliminação do monopólio da violência pelo Estado. Em sua retórica de “cercadinho”, Bolsonaro reiterou na sexta-feira 27 de agosto suas recomendações aos cidadãos, reafirmando que a posse de fuzis é a garantia da liberdade.

Os indignados militares da reserva certamente não estudaram Thomas Hobbes nas Agulhas Negras.  Se tivessem passado os olhos no Leviatã, talvez entendessem que a proposta de armar a população significa dispensá-los das funções que a Constituição lhes atribui. É o colapso do Estado moderno, o naufrágio do liberalismo político e a entrega da (des)ordem às milícias privadas. Quanto a Bolsonaro, indagar se leu Hobbes é jogar conversa fora. Ele não consegue ler sequer um bilhete de seu ajudante de ordens.

Os bolsonaristas declararam guerra aos demais. Uma declaração de guerra apoiada no pretexto do antipetismo, do anticomunismo e do anticristianismo travestido de pentecostalismo. Eles estão conclamando os aliados e, atenção, também os adversários para a guerra civil. Esta é forma que assumem as divergências sociais quando as regras da convivência pacificada pelo Estado são massacradas pelo retorno à barbárie.

Observador das turbulências que assolaram a sociedade inglesa no século XVII, Hobbes imaginou que o terror disseminado pelos bandos privados na luta religiosa só poderia ser contido pela concentração do poder e da força no Leviatã. Para ele, a visão da sociedade em que os homens conviviam pacificamente só pode surgir quando o Estado está consolidado, em que todos estão submetidos às leis emanadas do soberano.

A visão do homem predisposto ao contrato com o outro pressupõe o Estado organizado. Thomas Hobbes surpreende a sociedade dos indivíduos no momento em que o Estado submergiu na voragem da guerra religiosa, soçobrou na crise da sociedade governada pelo desejo e pelo medo. Para Hobbes, é permanente a possibilidade de o Estado, o Deus Mortal, ser destruído em uma crise desencadeada pelas rivalidades espicaçadas pela truculência individualista.

O soberano tem o dever primordial de garantir a segurança dos cidadãos contra as ameaças de violência. O medo da morte induz o homem a refugiar-se no Estado. Por isso a suprema obrigação moral do Estado é a de dar proteção ao cidadão. Hobbes considerava as forças armadas e a polícia órgãos imprescindíveis do Estado moderno, a encarnação de sua essência. Mas a segurança do cidadão estaria garantida apenas mediante a imposição de controles e limites aos funcionários da segurança pública, determinados pela lei. Essas funções devem ser exercidas com rigor para conter impulsos destrutivos dos indivíduos, mas submetida às restrições necessárias para impedir que a soberania do Estado se transforme em arbítrio, ou seja, no exercício de um poder privado pela burocracia estatal encarregada da segurança pública. Não por acaso, a proposta de liberação das armas vem acompanhada do desejo de aparelhamento da Polícia Federal.

Nas repúblicas modernas, se é que temos aqui algo parecido com isso, figuram entre as cláusulas pétreas aquelas relativas à representação legitimada pelo voto, à impessoalidade na administração pública e à constituição de um sistema de poderes e garantias fundado na lei. O sistema de poderes e garantias ancorado na lei é o núcleo central do Estado contemporâneo. É isso que o obriga a punir, no exercício do monopólio da violência, as tentativas de opressão arbitrária de um indivíduo sobre o outro. O descumprimento do dever de punir pelo ente público termina por solapar a solidariedade que cimenta a vida civilizada, lançando a sociedade no desamparo e na violência sem quartel. Os códigos da cidadania moderna foram concebidos como uma reação da maioria mais fraca contra o individualismo anarquista dos que se consideram com mais direitos e poderes.

O manifesto dos militares contra o STF é a prova cabal de sua aversão à igualdade fundamental entre os cidadãos. O tom do manifesto permite suspeitar que, ao vestirem a farda e empunharem armamentos, os oficiais sentem-se ungidos, superiores aos demais cidadãos. Vou repetir aqui alguns incisos do Estatuto dos Militares em sua Seção II:

IX – Ser discreto em suas atitudes, maneiras e em sua linguagem escrita e falada;

X – Abster-se de tratar, fora do âmbito apropriado, de matéria sigilosa de qualquer natureza;

XI – Acatar as autoridades civis.

O manifesto exprime, ademais, o afastamento dos ideais e princípios que inspiraram o movimento tenentista que postulava a modernização do Brasil nos anos 20 e 30 do século passado. Arrepiado com os termos do manifesto dos oficiais reformados, rebusquei os alfarrábios para encontrar o trabalho sobre o tema do jovem historiador Guillaume Azevedo Marques de Saes.

No texto que trata do Programa Político do Clube 3 de Outubro, Saes apresenta o Esboço do Programa Revolucionário de Reconstrução Política e Social do Brasil, “datado de fevereiro de 1932 e redigido por uma comissão composta por dois militares veteranos dos levantes tenentistas da década de 1920, Stênio Caio de Albuquerque Lima, capitão do Exército, e Augusto do Amaral Peixoto, capitão-tenente da Marinha, pelo tenente civil Abelardo Marinho de Andrade e pelo jurista – posteriormente ministro do Trabalho nos primeiros anos do Estado Novo – Valdemar Falcão.”

Inspirado no Programa Político, o Manifesto do Clube 3 de Outubro de 1935 proclamava: É preciso não repetir o erro dos idealistas de 1889. Aproveitemos as conquistas de outros povos, as lições da política mundial, o adiantamento da sociologia, mas sem perdermos a noção da realidade brasileira e sem abjurarmos as tradições nacionais. Realizemos a democracia, entregando o governo aos que trabalham e produzem. Asseguremos bom rumo à administração, facultando aos especialistas interferência eficiente na gestão dos negócios públicos. Evitemos o arbítrio, dando o governo a órgãos coletivos. Ergamos uma justiça autônoma, una e independente. Promovamos a educação intensiva da massa popular, generalizando o culto pelo Direito. E teremos assim operado a verdadeira reconstrução político-social do Brasil.

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