Cultura
Os anos de aprendizagem de Petra Costa
‘Apocalipse nos Trópicos’ não é um documentário sobre religião, mas um documento da nossa perplexidade. Deve ser visto e revisto com calma


A complexidade de Apocalipse nos Trópicos merecia interlocutores melhores. A frase pode soar pretensiosa, mas é infelizmente necessária. O dito jornalismo cultural, apressado como todo mecanismo cronométrico, visita suas pautas como quem bate pinos em uma esteira industrial — e assim, na verdade, liquida mecanicamente a tarefa de comentar os objetos que chegam ao mercado. Check list da semana: hoje amor, amanhã religião, depois consumo.
Os temas se sucedem e tomam a dianteira. A forma, porém, jamais entra em questão. Mesmo quando a resenha elogia, a obra de arte é tratada como instrumento, numa recuperação retardatária do didatismo. Vimos recentemente como a problematização da forma lança o crítico no pesadelo da encrenca — quando não no espancamento simbólico. Itamar Vieira Jr. chamou Lígia Diniz de racista. Aurora Bernardini foi acusada de antiquada por criticar autores bem-sucedidos. É o conteúdismo que se sobrepôs ao formalismo, deixando-nos espremidos entre dois erros.
Vi, nas redes, esses dias, alguém dizer: “ok, o conteúdo é o que importa mesmo” — para logo em seguida citar, imprecisamente, um Aristóteles de aeroporto. A mixórdia contemporânea enlouquece quem estuda e aprofunda, a cada dia, essa Filosofia Artificial Generativa, batida com selfies no liquidificador do Google.
Em suma: onde a forma não tem importância, reina o domínio do nada. O que distingue um romance de uma tese acadêmica ou de um filme? Qualquer uma dessas coisas pode falar sobre religião, por exemplo. O que as diferencia é apenas a forma. E é como tese de teologia, afinal, que este filme de Petra Costa vem sendo avaliado: pelas afirmações que faz.
Na Folha, articulistas ligeiros questionaram a diretora com estatísticas sobre o crescimento dos evangélicos. No Estadão, escreveu-se que “o filme explora o crescimento da fé evangélica no Brasil”.
A primeira das complexidades de Apocalipse nos Trópicos está no fato de narrar o processo de descoberta de um EU iludido. O filme não é sobre Silas Malafaia, mas sobre o modo como uma pessoa descobre a presença ubíqua da mentalidade evangê all around. Essa percepção — confessa o EU que narra a si — é tardia.
São os vícios de uma esquerda lunática, portanto, o primeiro tema do filme: a sujeita condutora do processo (digamos Petra Costa, apenas para dar-lhe um nome) vai a Brasília para escrutinar um episódio político e se vê armadilhada num ritual religioso que afronta a idealidade de um Estado Laico.
São também os vícios formativos da bolha educacional paulistana, da cidade onde estudou a cineasta, crescida na Z.O. culturete. São as loucurinhas do ambiente familiar, o crescer na fantasia amniótica de que a Razão triunfaria, de que o Estado Moderno Ocidental se ergueu sobre uma laicidade neutra, suprema realização dessa mesma Razão. A erosão dessa fantasia é, portanto, o primeiro dado do Apocalipse.
Cena do documentário ‘Apocalipse dos Trópicos’, de Petra Costa, recém estreado na Netflix. Créditos: Divulgação Netflix
Deve-se dizer com franqueza: a diretora infla a má interpretação de seu próprio filme quando aceita o jogo das declarações extra-artísticas em talk shows que a apresentam como especialista em religiões — o que ela não é. Esses programas não debatem arte, mas convertem obras em pano de fundo para bullshit talking. Não está em questão a inteligência dos participantes, mas o funcionamento da roda: girando em alta velocidade, ela amassa qualquer matéria contra as paredes centrífugas do espetáculo. Os festivais, assim, tornaram os escritores mais importantes que seus livros; os cineastas, mais importantes que seus filmes; quando não os curadores — hoje ainda mais importantes que os artistas.
Eis a segunda armadilha de Apocalipse nos Trópicos. É claro que Petra estudou para fazer seu filme — trata-se de uma obra exemplar da relação entre arte e teoria. Isso, entretanto, não faz dela uma teóloga. Apresentá-la como tal é o modo mais eficaz de não debater o que o filme apresenta. A indústria cultural conduz a diretora para esse cadafalso: expor a fragilidade de sua teologia improvisada é um modo de invalidar a obra.
Mandracaria semelhante ocorreu com o seu Democracia em Vertigem: a guarda patrimonial do jornalismo sacou do colete uma exótica teoria do “lugar de berço”. A lição é simples: Petra deveria seguir o exemplo dos grandes e silenciar. O filme deve ser debatido sem ela.
É justamente aí que se revela a segunda dimensão de sua complexidade: a experiência narrada é o fio que Petra puxa da superfície para expor como uma pessoa ignorante em matéria religiosa mergulha nas Escrituras, tentando compreender seu próprio aturdimento diante de pregões, slogans e oratórias que atravessam o Brasil inteiro: dos para-choques de caminhão às universidades.
Ao entrar no jogo dos talk shows, Petra acaba inflando a má interpretação de seu próprio filme
Deus, nesse momento religioso (mas pseudorreligioso), converteu-se em palavra abstrusa, cuja única função é fática. A esquerda, nesse sentido, patina bonito ao expor uma degradação — e esse talvez seja o calcanhar de Aquiles da revelação de Petra.
Vale dizer: se há algo a debater a partir do filme, não são as estatísticas mobilizadas, nem as hipérboles sobre o dominionismo, mas a ideia de que já fomos melhores quando o conservadorismo era católico. Brasília evocada como triunfo da Razão é incompatível com a ordem simbólica real de uma cidade riscada no papel como cruz e inaugurada em advento, no discurso de um cardeal que enalteceu o sonho visionário de Dom Bosco.
Brasília é o cúmulo do Estado Cristão Brasileiro, e não o contrário. A “captura” pelos Cabos Daciolos, naquela cena estupenda que abre o filme, está mais para realização perfeita do conceito que para degeneração de uma utopia. O ateísmo do arquiteto que desenhou seus prédios e a elegante neutralidade do urbanista que traçou suas ruas não estão em questão. Brasília foi vendida como sonho colonial da Cristandade.
Nada disso, porém, diminui os méritos do filme, um verdadeiro artefato explosivo. Sua terceira complexidade deriva das anteriores: lidar com o assombro da cena inicial e com o aturdimento do leilão de almas, correlato contemporâneo do leilão de escravos, exige mais que ler a Bíblia presenteada à narradora, “começando por João”. É preciso mergulhar na aspereza da rua, no delírio desesperado dos condenados da terra, seguir a pregação performática do CEO-Cristão-Empresário-Orador que monetiza a mensagem de bom agouro e a estampa em guardanapos da ordem competitiva, em canudinhos do empreendedorismo etc.
Estamos, assim, diante de um romance de formação às avessas, um romance de deformação. O que se narra corresponde estritamente ao processo universal pelo qual um indivíduo se aproxima de uma religião para converter-se a ela. Só que a conversão jamais acontece. Em alguns momentos, a câmera até transpira a impressão de que a diretora cogitou essa hipótese.
A empatia é a marca de Petra Costa como entrevistadora: ela consegue achegar-se até mesmo ao capeta — e fazê-lo falar. Essa conversão impossível é justamente onde a obra encontra suas surpresas maravilhosas. Quando fala, Malafaia revela a pobreza de sua teologia, seu Cristo de almanaque, seu linguajar bastardo e, sobretudo, a transcendência zero de sua fé alegada. Imaginem, ao término do filme, a diretora batizada nas águas do Jordão. O horizonte da narrativa sugere isso, mas o gesto não acontece. O palavreado de Malafaia a repele; no meio do caminho, porém, ela encontra algo que não pode ser descartado: a fé genuinamente transcendente de um cristianismo popular real. Que ela, honestamente, não sabe onde pôr.
Quatro passagens marcam esse processo:
- o contraponto anacrônico entre Marx e Cristo, feito por Billy Graham;
- a rememoração da Teologia da Libertação;
- a evocação do Evangelho segundo Pasolini (blasfêmia!);
- a conversa com Lula.
Quando Petra o procura, não é apenas para falar de eleição. Intuiu que o presidente teria algo a dizer sobre a confusão escatológica, e ele tem. Lula afirma que a esquerda tradicional escorregou no ateísmo, embora mantenha reservas quanto à conveniência de misturar fé e política.
A narradora começa então a sair de cena. Convertida como queria Daciolo, mas convertida ao contrário. Não ao anticristo, mas à matriz religiosa que o pentecostalismo esmagou na América Latina: a tradição fraterna e descalça da “opção pelos pobres”, de uma revolução diáfana. Lula, no entanto, adverte — nos adverte — que o tempo das Comunidades Eclesiais de Base já era. A “verdade libertadora” hoje se encontra nos pix benditos de um neo-proletariado pejotizado, para o qual os Casaldáligas tornaram-se inúteis, irrelevantes.
A diretora-personagem se afasta, por fim, recuando em meio às ruínas de uma racionalidade que jamais existiu, mas que foi substituída por uma irracionalidade nova. Essa irracionalidade é para ela uma revelação. Seus anos de aprendizado político e religioso se encerram numa não aderência, numa recusa. Ela foi transformada pelo processo, mas em uma direção inesperada.
O leitor percebe, ou concorda, que Apocalipse nos Trópicos não é um documentário sobre religião? É, antes, um documento da nossa perplexidade. Deve ser visto e revisto com calma, decantado pelo tempo, sem a pressa equivocada da subscrição.
Eis o seu versículo final:
“Conhecerás a ‘verdade’, e ela o deixará perplexo.”
Mote, aliás, da própria arte.
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