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Opinião

Opinião: Recriaram o ministério da guerra

Milton Rondó: As Forças Armadas Brasileiras serão responsáveis pelo genocídio, uma mancha que não se apagará da nossa história

Presidente da República, Jair Bolsonaro, durante cerimônia do Dia do Soldado, com imposição da Medalha do Pacificador e da Medalha do Exército Brasileiro. Foto: Marcos Corrêa/PR
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“Se fechar a porta a todos os erros, a verdade pode ficar de fora”

Provérbio hindu

Estar na vida é difícil e perigoso, mas é aventura sem preço. Manter os olhos abertos, a mente lúcida e a sensibilidade desperta são faculdades que a vida nos concede, gratuitamente.

Por isso, aterroriza que o atual desgoverno tenha previsto aumento de 35 bilhões de reais para a defesa e a concomitante redução de 4,2 bilhões para a educação, reduzindo também os recursos para a saúde, em plena pandemia.

Um governo que prefere as armas aos livros não é um bom governo, mas um péssimo. Pior, a medida deverá iniciar uma corrida armamentista na região, drenando os parcos e essenciais recursos da educação, saúde, conhecimento, cultura etc.

Ou seja, as Forças Armadas Brasileiras serão responsáveis não apenas pelo genocídio nacional – com o Ministério da Saúde há meses sob intervenção militar, mas também regional, uma mancha que não se apagará da nossa história.

Ainda mais grave, a pretexto de canalizar recursos para a defesa, o próprio censo demográfico 2021 – que fora atrasado de um ano em função da pandemia – poderá ser cancelado.

Há mais de dois mil anos, é sabido que não se governa sem censo demográfico, razão pela qual Jesus nasceu em uma estrebaria, pois seus pais, da Tribo de David, tiveram de viajar a Belém, cidade de David, para o recenseamento.

Para gente tão tosca quanto o atual desgoverno e seus generais, almirantes e brigadeiros isso não importa, mais vale acaparar o orçamento público do que defender o país e o povo, ao qual, aparentemente, entendem não pertencer.

Na prática, o Brasil passa a ter não mais um Ministério da Defesa, mas um da guerra. Portanto, terão razão os vizinhos em se sentirem ameaçados, embora não nutram contra nós qualquer animosidade, sobretudo porque já há declarações de militares de que é possível intervir em países vizinhos, o que, aliás, constitui crime, segundo o artigo 4° da Constituição Federal, que veta a intervenção em assuntos internos de outros países. 

Quanto ao inimigo real, o imperialismo, que nos roubou a democracia; o pré-sal; a indústria de construção civil; a naval e a aeronáutica; além das matas; das águas e até o vento – tendo em vista que parque eólico que custou 3,1 bi foi entregue por 500 milhões – silêncio e inação da caserna, portanto conivente e co-autora dos crimes referidos.

Mais ainda, a tragédia das forças alienadas estende-se às polícias militares, como vimos no despejo violento e covarde de 450 famílias do Acampamento Quilombo Campo Grande, em Minas Gerais, impetrado por governador que se considera “novo”, o que constitui um verdadeiro escárnio político.

Em plena pandemia, famílias que produziam foram jogadas na rua. Em ação que evoca os piores momentos da história da humanidade, a própria escola por eles edificada foi demolida, em ato monstruoso de desgovernos que preferem as armas à educação.

O nome da citada escola, Eduardo Galeano, não poderia ser mais simbólico. Com efeito, Galeano foi um dos homens que mais denunciou o imperialismo, os crimes dele e de seus prepostos na Pátria Grande, tão ultrajada pelas oligarquias locais, que nada têm de novo, mas tudo, de vetusto.

No momento em que a Argentina nos dá, quotidianamente, lições de bom governo, tendo sido capaz de julgar e condenar os militares assassinos que traíram a pátria, vale citar o próprio Galeano, em “Dias e noites de amor e de guerra”, relembrando o passado obscuro que a nação irmã conseguiu, por meio da justiça real, superar. 

Diz o velho provérbio: Mais vale avançar e morrer que se deter e morrer. Chegaram em vários automóveis brancos, desses que a polícia usa. Vinham armados para uma guerra. Sem pressa, durante uma longa hora, saquearam a casa de Gutiérrez Ruiz. Levaram ele e levaram tudo, até as revistinhas das crianças. Poucos metros além estavam os guardas armados das embaixadas de vários países. Ninguém interveio.

Duas horas depois, foram buscar Zelmar Michelini. Michelini, que nesse dia tinha comemorado seu aniversário, vivia em um hotel no centro de Buenos Aires. Também dali levaram tudo. Não se salvaram nem os relógios de seus filhos. Os assassinos não usavam luvas e as impressões digitais ficaram espalhadas por todas as partes. Ninguém se ocupou de examiná-las. 

Nas delegacias, negaram-se a receber as queixas, apesar de Gutiérrez Ruiz ter sido presidente da Câmara de Deputados do Uruguai e Michelini legislador durante muitos anos. “Seria desperdiçar papel”, disseram os policiais.

No dia seguinte, o ministro da Defesa da Argentina declarou aos jornalistas, sem pestanejar: “Trata-se de uma operação uruguaia. Não sei ainda se oficial ou não”.

Tempos depois, em Genebra, disse o embaixador uruguaio ante a Comissão de Direitos Humanos da ONU: ‘A respeito das vinculações entre a Argentina e o Uruguai, naturalmente existem. Nos sentimos orgulhosos delas. Estamos irmanados pela História e pela cultura”.

Ainda sobre Michelini, Galeano registra: “Contou-me que estava sendo ameaçado por telefone. Não perguntei-lhe por que não ia embora. Como a milhares de uruguaios, a Michelini tinham negado o passaporte. Mas não era por isso. Não perguntei a ele por que não ia embora para que ele não me perguntasse por que não ia embora eu. O menino assobia forte quando passa pela porta do cemitério”.

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