Daniel Garroux

Advogado especializado em Direito do Consumidor e doutor em Teoria Literária pela USP

Opinião

Onde estão as indenizações da Enel pela falta de energia?

Muitas vezes, o consumidor só tem seus direitos respeitados ao chegar ao Judiciário. Isso pode provocar, sem dúvida, alta na quantidade de ações, mas a culpa não é do consumidor, tampouco de São Pedro

Foto: Alexandre Suplicy/Reprodução
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Passados mais de três meses do apagão em São Paulo, ocorrido em 3 de novembro de 2023, não se tem notícias de pagamentos de indenização por parte da Enel, multinacional italiana responsável pelo fornecimento de energia no Ceará, Rio de Janeiro e São Paulo. No Rio, a Associação Brasileira de Bares e Restaurantes já move ação coletiva para ressarcimento dos danos provocados pelas frequentes interrupções no serviço.

De fato, a Resolução Normativa nº 1.000, de 2021, da Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica) é clara ao dizer que é direito do consumidor “ter a energia elétrica religada, no prazo máximo de 24 (vinte e quatro) horas para a área urbana ou 48 (quarenta e oito) horas para a área rural”. Logo, o ressarcimento é um dever junto aos consumidores. Mas a Enel, após terceirizar boa parte de seus funcionários, atua para terceirizar a responsabilidade pela falta prolongada de luz, sobretudo nos bairros pobres.

Voltemos um pouco para entender melhor a questão, tendo o episódio de novembro na cidade de São Paulo como referência, ainda que novos apagões tenham ocorrido desde então. A bem da verdade, a interrupção do fornecimento foi ocasionada, entre outros fatores, por quedas de árvores durante fortes chuvas. Contudo, isso não explica a demora para restabelecer o serviço. Por mais que o temporal fosse inevitável, o longo tempo sem energia poderia ter sido evitado. Esse é o ponto. Ao priorizar a distribuição de lucro aos acionistas em detrimento do investimento em pessoal, em renovação da rede e em manutenção preventiva, a Enel faltou com seu dever de cuidado. Consequentemente, milhares ficaram dias sem luz.

A Enel é prestadora de um serviço público, portanto, sua responsabilidade é objetiva (independe de dolo ou culpa). Mesmo quando a execução é concedida a um ente privado, o serviço continua público (em juridiquês, dizemos que a “execução” foi transferida, mas a “titularidade” segue pública). A responsabilidade objetiva, contudo, não é absoluta. Diante de eventos naturais imprevisíveis ou inevitáveis, a concessionária pode não ser responsabilizada.

No caso do apagão, a Enel traz essas hipóteses como excludentes de seu dever. Na prática, equivale a supor que a empresa não teria praticado nenhuma ação causadora de prejuízo (em juridiquês, não haveria “nexo causal” entre condutas da empresa e os danos; em linguagem popular, o consumidor que vá reclamar com São Pedro!). Sob essa argumentação, apenas aparelhos elétricos danificados pelo apagão seriam objeto de indenização e ainda assim após comprovação do dano pelos consumidores.

Mas essa “desculpa” e “narrativa” não colam. Primeiro porque não estamos falando dos danos à rede elétrica causados pelo temporal, mas da demora em restabelecer o serviço. Foi essa demora que causou transtornos subjetivos e materiais aos usuários. Além disso, os eventos são recorrentes: em 21 de janeiro de 2022, por exemplo, moradores de São Paulo ficaram mais de 25 horas sem energia após fortes chuvas. Isso aconteceu em anos anteriores, já que as inundações são sempre nessa época, há décadas. Voltou a acontecer pós-Carnaval de 2024.

E não é algo imprevisível: relatório do IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima da ONU), de março de 2023, já advertia que eventos intensos seriam mais frequentes e graves. Como se não bastasse, o Sindicato dos Eletricitários de São Paulo, relatou ter alertado a Enel sobre o risco de a cidade ficar “uma semana sem luz”, se o número de funcionários não aumentar. A concessionária escolheu ignorar os avisos.

Isentar a Enel por não ter tomado as precauções necessárias é dar salvo-conduto para que as empresas, doravante, simplesmente negligenciem a emergência climática. Além de injusta, tal atitude leniente por parte das autoridades seria danosa, enviando uma mensagem à sociedade de que os alertas científicos podem ser impunemente desprezados.

Para apurar a responsabilidade da Enel, foi instalada na Alesp uma CPI em abril de 2023. Segundo o relatório final, após a privatização, houve uma transição da “manutenção preventiva para a corretiva”. Ou seja, a Enel parou de tomar medidas preventivas para securitizar a rede. O documento também conclui que a empresa priorizou a distribuição de lucros aos acionistas em detrimento dos gastos operacionais. E que “o fechamento de lojas de atendimento e a redução de funcionários” por parte da Enel “impactou diretamente a acessibilidade e a qualidade do serviço oferecido às comunidades”.

Muitas vezes, o consumidor só tem seus direitos respeitados ao chegar ao Judiciário. Isso pode provocar, sem dúvida, alta na quantidade de ações, mas a culpa não é do consumidor, tampouco de São Pedro. As agências reguladoras e as concessionárias são as reais responsáveis pelo bom funcionamento de atividades essenciais. Logo, a demora na normalização do serviço resulta, sim, em indenizações a quem ficou desassistido.

Não podemos admitir que a Enel se mova como na música “Aguenta a mão, João”, de Adoniran Barbosa, que já nos anos 1960 cantava: “Não reclama, contra o temporal/ Que derrubou seu barracão/ Não reclama, aguenta a Mão, João”. Afinal, passou da hora de “João” receber indenização pelos danos sofridos.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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