Olhares desconfiados para a ‘ajuda’ financeira do Norte ao Brasil

Alocação de verba pública com países do Sul Global é uma medida impopular nos países do Norte. E seus políticos sabem disso.

Sede da Mercedes Benz no Brasil

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São inimagináveis os desafios sofridos pelo nosso povo, que vejo desde a distância além-mar em Diáspora. Agonizante e impotente ouço as dificuldades de membros de minha família negra, estruturalmente empobrecida e consequentemente vulnerável, num momento tão desafiador de crise. Estatísticas de mortes, as redes sociais explosão do ativismo dos movimentos sociais e lideranças que se colocam na linha de frente contra o Governo.

É o desafio desse trânsito entre dois universos a pertencer.

Diante desse cenário assustador é frustrante desde aqui do Hemisfério Norte ver a passividade do silenciamento com que o Norte Global tem olhado a crise política e a tragédia da pandemia no Brasil, mas também no Sul Global em geral.

“Temos que ser claros: só podemos derrotar o coronavírus globalmente. Caso contrário, ele voltará para a Europa e, talvez, ainda mais perigoso. A Alemanha não deixará seus parceiros e amigos brasileiros sozinhos nessa crise”, falou amistosamente o Ministro da Cooperação Técnica do Governo da Alemanha Gerd Müller à Deutsche Welle Brasil esta semana, ao assinar um acordo no valor de 4,5 milhões de Euros numa parceria com a Mercedez Benz do Brasil (uma empresa alemã, diga-se de passagem), para a aquisição de unidades de saúde moveis, que serão destinadas a prestar assistência à saúde em áreas remotas do país. Uma declaração autêntica e contundente com os seus interesses.

O Ministro alemão apoia seus “parceiros e amigos”, acaricia o setor empresarial da Alemanha, ao combinar “Solidariedade Internacional” na crise, dando ganhos ao setor automobilístico, que, na Alemanha, sofre fortemente com o impacto da pandemia e ainda alivia o olhar crítico de muitos contribuintes alemães que não gostam que o dinheiro da Nação seja “gasto” com a “desnecessária” cooperação internacional (discurso especialmente querido pela extrema direita).

E, para coroar, a história nos presenteia com a boa honestidade alemã, ao ser muito “claro” e expor a real motivação da oferta de ajuda ao Brasil em suas próprias palavras: para ele [o coronavírus] não voltar para a Europa ainda mais forte”. Quando esta mesma Europa já não é mais o epicentro da Pandemia.


A Pandemia e a importância de um olhar crítico e decolonial entre as relações Norte-Sul

As periferias do mundo, enquanto isso, lutam em suas fragilidades institucionais, econômicas, de herança colonial e imperialista do Norte Global para superarem os seus limites na cobertura de assistência à saúde,  no acesso a vacina, especialmente a África que ainda se encontra na dependência das indústrias farmacêuticas internacionais, despertando uma grande campanha internacional pela quebra das patentes das vacinas, entre outros desafios. A fala do Ministro alemão demonstra claramente que estamos ainda longe de vivermos a utopia de uma empatia e responsabilidade global, enquanto coabitantes planetários, como nos desafia o Prof. Achille Mbembe, se as mobilizações globais contra a expansão da pandemia seja entendida como proteção da Europa, na minha interpretação.

A experiência de ter trabalhando na cooperação técnica internacional, enquanto Nordestina, formada por professores fervorosos na “teoria da dependência”, e ter vivido a subalternidade econômica e regional no meu próprio país, me fez reconhecer, por um lado, a importância dos esforços de profissionais engajados e comprometidos nas lutas dentro das instituições, provocando, disputando as narrativas e vivenciando propostas inovadoras, integradoras em suas praticas técnicas.

Por outro lado, me vi confrontada com a dura realidade das relações de poder baseadas na forca decisória de quem “dá” (know-how, crédito financeiro, perdão das dívidas externas, mediação de conflitos, acordos comerciais) e na esperada passividade de quem “recebe”.  Mesmo assim, a força das instituições financeiras internacionais, que atuam especialmente para a garantir status quo dos países ricos, nos acordos bilaterais, dita suas condicionalidades e alicerçam com isso o poder de quem decide, em sua maioria o Norte Global ou a China, especialmente na África Subsaariana.

Ao olhar esses desafios marcados pelas dualidades centro-periferia, Norte-sul, desenvolvimento-subdesenvolvimento, sinto-me grata pelos avanços políticos e epistêmicos das narrativas de hoje. Podermos veementes discutir o modus operandi do poder colonial e sua herança nas instituições, com maior radicalidade sob ótica das análises do racismo estrutural. E, ao arriscarmos um olhar decolonial, vislumbrarmos a abolição de instituições que reproduzem esse mesmo modus operandi de dominação sobre nossos corpos e instituições. A cadeia de relações étnico-raciais e históricas das Instituições Internacionais tem seus tijolos fundantes também no racismo. E nisso Silvio Almeida nos fortalece a entender no livro fenomenal “Racismo Estrutural” da coleção Feminismos Plurais, coordenada pela querida Djamila Ribeiro: “as instituições são apenas a materialização de uma estrutura social ou de um modo de socialização que tem o racismo como um dos seus componentes orgânicos”.

Se olharmos a nós mesmos historicamente definidos pelo Norte Global, enquanto “ex-Colônias”, “Terceiro Mundo”, “Países Subdesenvolvidos”, “Países Emergentes”, “fragile States“ reconheceremos neste olhar a herança do passado colonial sob os nossos corpos subalternizados, nutrido pelo contínuo desejo de tutelamento. Portanto, romper esta lógica e alavancar processos decoloniais nas instituições globais é uma tarefa urgente, necessária e de reparação histórica global.

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